Babel ou a Necessidade de Violência: Uma história arcana da revolução dos tradutores de Oxford, lançado pela Editora Intrínseca, é uma obra que transcende os limites tradicionais da fantasia, entregando ao leitor uma narrativa densa, provocativa e profundamente crítica sobre poder, linguagem e colonialismo. R.F. Kuang, já consagrada por trazer discussões sociais importantes com “A Impostora” e a trilogia “A Guerra da Papoula“, vencedora dos prêmios Nebula e Locus, demonstra aqui um domínio impressionante tanto da ficção especulativa quanto da crítica social.

Utopia e prisão
Ambientado na Inglaterra do século XIX, o romance acompanha Robin Swift, órfão chinês levado a Londres por um professor enigmático, que o prepara para ingressar no Real Instituto de Tradução de Oxford, conhecido como Babel. O Instituto, com sua torre imponente, é o epicentro mundial do saber e da magia, onde a tradução de idiomas é literalmente fonte de poder: barras de prata encantadas manifestam os significados perdidos entre línguas, garantindo ao Império Britânico uma supremacia sem precedentes.
Kuang constrói um sistema mágico original, em que o domínio das palavras se converte em força material e política. Mas Babel, para Robin, é também uma armadilha dourada: um espaço de pertencimento e exclusão, de fascínio intelectual e de constante tensão identitária. O protagonista vive o dilema de servir a uma instituição que, ao mesmo tempo que o acolhe, utiliza seu conhecimento para perpetuar a opressão colonial sobre seu povo de origem.

Colonialismo, racismo e a violência das palavras
O grande mérito de Babel está em sua abordagem sem concessões dos mecanismos de dominação colonial. Kuang não suaviza a crítica: a torre de Babel é descrita como o próprio negócio do colonialismo, um centro que converte o saber e a diversidade linguística em instrumentos de exploração e controle. A autora utiliza a fantasia como lente para expor as feridas abertas pelo imperialismo, mostrando como o conhecimento – e, sobretudo, a tradução – pode ser arma de dominação, apagamento cultural e apropriação.
A narrativa é permeada por discussões sobre racismo, privilégio, misoginia e a violência estrutural que acompanha cada ato de preconceito. Os personagens racializados, como Robin e seus colegas Ramy e Victoire, são essenciais para o funcionamento do sistema, mas jamais plenamente aceitos pela sociedade inglesa. Kuang desenha com precisão o paradoxo de serem indispensáveis e, ao mesmo tempo, descartáveis.

Fantasia Dark Academia, Donna Tartt e ficção histórica
Babel dialoga com o subgênero dark academia, evocando a atmosfera sombria e intelectual de obras como A História Secreta, de Donna Tartt. No entanto, Kuang subverte as expectativas do gênero ao centrar sua trama em personagens não brancos e ao usar o ambiente acadêmico para criticar, e não apenas celebrar, as estruturas de poder. O romance é também uma ficção histórica, reimaginando a Revolução Industrial e a guerra do ópio sob uma ótica anticolonial e anticapitalista.
Apesar dos elementos fantásticos – as barras de prata, a magia da tradução –, Kuang utiliza o sobrenatural mais como metáfora do que como espetáculo. Isso pode frustrar leitores em busca de ação ou romance, já que o ritmo é deliberadamente lento e reflexivo, com longos capítulos e discussões teóricas. O foco está na construção de mundo, nos debates filosóficos e na tensão moral.

A narrativa de Kuang continua incrível
A escrita de Kuang é afiada, por vezes sarcástica, sempre carregada de indignação e melancolia. Ela não hesita em expor as contradições de seus personagens, especialmente Robin, dividido entre o desejo de pertencimento e a necessidade de resistência. O final, embora considerado apressado por alguns leitores, mantém a força poética e emocional da obra, deixando marcas profundas.
Babel é, ao mesmo tempo, uma carta de amor à linguagem e uma declaração de guerra contra as estruturas que a instrumentalizam para oprimir. É um livro que exige dedicação, mas recompensa com uma experiência literária única, que convida à reflexão sobre temas urgentes e universais.

Babel é uma obra essencial para quem busca não apenas uma fantasia envolvente, mas uma análise contundente das relações entre linguagem, poder e colonialismo. R.F. Kuang consolida-se como uma das vozes mais relevantes da literatura fantástica contemporânea, entregando um livro que é, ao mesmo tempo, denúncia, homenagem e manifesto.