A Casa que Jack Construiu (The house that Jack built) é novo thriller alegórico de Lars Von Trier, que retrata os casos de assassinatos ao longo de doze anos cometidos pelo serial killer Jack – em atuação impecável de Matt Dillon.
O longa polêmico de Von Trier não deseja apenas chocar, nem entrega um filme débil e gore, carregado em cenas de violência gratuita e sem sentido. Baseado na Divina Comédia, diálogos inteligentes entre Jack e seu próprio Virgilio divagam sobre a arte, valores morais, violência social e Nazismo.
Autointitulado como Sr. Sofisticação, o serial killer escolhe 5 atos para narrar, sob seu ponto de vista apático e egocêntrico, alguns dos assassinatos que cometeu.
As manias absurdas de Jack causadas pelo TOC atrapalham seus assassinatos a sangue frio e são a base de uma comédia negra e debochada.
Seus atos recebem contrapontos de Virgilio, que age como antagonista e questiona não apenas a conduta do assassino, mas traz um ponto de vista satírico de Von Trier sobre seus próprios filmes e temas controversos do qual fez parte nos últimos anos.
Durante o filme, Jack busca defender a brutalidade, o horror e o assassinato como forma de arte. Arte também vista como expressão política. A qual ele persegue durante toda sua vida como engenheiro frustrado, impedido de ser arquiteto pela mãe.
A figura materna é alvo de seu ódio internalizado – comumente visto em muitos psicopatas inspirados na realidade – que Jack canaliza para outras mulheres vulneráveis e ingênuas, opostas à personalidade de sua mãe.
O que incomoda mesmo é a misoginia e o feminicídio nos atos escolhidos. Entretanto, não se trata de uma mensagem que legitima a violência contra a mulher.
A mulher vista como objeto de subjugação, humilhação e como presa, assim como o abuso físico e psicológico, são assuntos tratados como dignos de psicopatia.
A negação do serial killer sobre o ser feminino é evidente quando corta os seios de uma moça ingênua – os mesmos que nutrem a vida, e são mais tarde objeto de desejo. A desumanização do sexo feminino em busca de reparação pela subjugação de uma figura materna opressiva.
O ódio ao feminino é fio condutor do ciclo de destruição e reconstrução que Jack está preso. Direcionado também na eterna construção e demolição da casa tão almejada por ele. Mas o material nunca é perfeito.
Sua obsessão pelo perfeccionismo é retratada pelas inúmeras cenas reais de Glenn Gould, pianista considerado ícone da perfeição artística, interpretando uma peça de Bach.
Ao contrário do que se espera de um personagem decadente, Jack acentua a decadência social em contraste com seus assassinatos.
Chocante é estar de frente com as inversões de valores crescentes no mundo real.
Ele exemplifica seu ponto de vista propondo uma brincadeira perversa a uma das vítimas:
Ela pode gritar por ajuda na janela do prédio. Ninguém dá a mínima. Também pode correr até a viatura parada na calçada e pedir ajuda ao policial, que apenas diz que ela está bêbada e a aconselha voltar ao prédio.
Minutos depois do assassinato, Jack sai pela porta da frente, e vê o mesmo policial enquadrar um casal de jovens negros que apenas estava passando pelo local.
Dias depois ele confecciona uma carteira com os seios da vítima e usa normalmente em situações cotidianas. Novamente ninguém repara.
Angustiante é reconhecer tais nuances na realidade.
O terror reside no retrato de como os humanos facilmente tendem a abusar da inocência, ingenuidade e vulnerabilidade de outros seres vivos, principalmente quando se trata de seus semelhantes.
As caças como prática esportiva em temporadas designadas a exterminar determinadas raças de animais são nada sutis ao serem comparadas com limpezas étnicas pregadas pelo III Reich, Ku Klux Klan e supremacistas brancos.
O Nazismo é ponto especialmente atacado por Von Trier. Um serial killer megalomaníaco, frustrado como artista, tal como Hitler. A barbárie como expressão artística, mencionado também através de Albert Speer, arquiteto-chefe e ministro do Armamento do Terceiro Reich. Conhecido como “O bom nazista”.
Jack caminha pelo plano do mundo real observando comportamentos humanos, como Virgilio conduz Dante pelos três reinos dos mortos, começando pelo inferno.
O inferno deixa de ser a ideia do que se encontra após a morte, ou digno de castigo divino. Ele é social, palpável, humano e real. Nas palavras de August Strindberg: o inferno é aqui.
Este sofrimento cru, real além das cenas bem construídas artisticamente por Von Trier, é uma estratégia de denúncia, não de prazer sádico. Neste ponto de vista niilista, não há outra comparação senão a com o inferno.
Von Trier equilibrou bem as doses de reflexão, sátira, crítica e violência para tratar de uma realidade social que o cinema de puro entretenimento não ousa, e apenas oferece mais um refúgio do que nossos olhos se recusam a ver.
Não é nenhuma surpresa que The House That Jack Built pode (e deve) incomodar: é um abrir de olhos necessário. Especialmente em tempos de ascensão do neofascismo pelo mundo.
Lars Von Trier sempre é necessário em sacudir a nossa mente. É o que o filme faz, é cinema transgressor.
Nos bons momentos é um filme que fala de tudo isso, nos momentos ruins é o diretor batendo palma para si mesmo, talvez Melancolia ainda seja o seu filme mais acertado e sincero.