R. F. Kuang, aclamada autora sino-americana conhecida por suas obras que abordam colonialismo e identidade racial, retorna com A Impostora, lançado pela Editora Intrínseca, uma narrativa incisiva e desconfortável sobre apropriação cultural, racismo e as complexas dinâmicas de poder na indústria editorial contemporânea.

O livro, que oscila entre ficção e crítica social, explora temáticas muito atuais por meio de uma trama que envolve o dilema ético em torno da apropriação de histórias de outras culturas, levantando questões sobre autoria e legitimidade.

Mais do que uma obra de ficção, o trabalho de Kuang é uma crítica social poderosa e uma reflexão essencial sobre a luta por espaço, voz e representatividade.

Em A Impostora, seguimos June Hayward, uma escritora branca, cujo sucesso literário não atinge o brilho desejado até o fatídico acidente com Athena Liu, uma renomada autora sino-americana, que acaba falecendo. Athena, já uma estrela ascendente, tinha acabado de escrever um manuscrito poderoso sobre os trabalhadores chineses durante a Primeira Guerra Mundial.

A partir dessa tragédia, June toma para si o manuscrito de Athena e publica a obra como se fosse sua, alcançando uma fama que nunca antes havia experimentado.

Para comentar sobre essa obra de Kuang, eu convidei uma amiga nikkei, pois este local de fala e análise pertence à pessoas amarelas. Num bate-papo, transformado em post para o Portal do Nerd, ela, descendente de terceira geração de japoneses, responde algumas perguntas feitas por mim sobre questões que A Impostora aborda durante sua narrativa, fazendo com que seja um livro que oferece uma importante e atual leitura.

A narrativa aborda não apenas o roubo literal de uma história, mas o modo como June, uma mulher branca, se apropria do espaço de uma autora de ascendência asiática. Qual sua opinião sobre essa questão relacionada à representatividade?

Questões sobre a diversidade, seja ela de gênero, etnia, dentre outras, tem sido um incômodo para uma maioria da população branca ou que deseja manter certos privilégios, independente das motivações ou justificativas. Kuang trouxe para o seu livro um recorte daquilo que ela interpretou sobre atitudes com minorias: uma caricatura dela mesma. Por mais que a narradora desesperadamente tente convencer o leitor ela ter razão, são tantas falhas de caráter, falas discriminatórias e preconceituosas que é impossível não sentir revolta ou ao menos um incômodo. Prova disso é analisarmos diversas resenhas sobre esta obra em que pessoas não engajadas ou preocupadas com essas questões acabam desenvolvendo um discurso de “entendo a questão racial, mas…”. No entanto, este livro é exatamente a prova de que não deve existir “mas…”, que surgem como justificativas para amenizar a importância de discussões como essa.

“Ainda mais quando a morta também é ladra e mentirosa. Foda-se, vou falar mesmo: pegar o manuscrito de Athena servia de reparação histórica, uma compesação pelas coisas que Athena tirou de mim.”

Quando June acredita que pode contar tão bem (ou melhor) a história do que a própria autora asiática, qual sua opinião sobre o paralelo entre a ficção e como culturas não-ocidentais ou não-brancas são marginalizadas, minimizadas ou reescritas para o público ocidental?

Para June, o olhar de Athena era enviesado e tendencioso, a ponto dela decidir alterar a etnia de certos personagens e suavizar outros para fazer com que sua visão de mundo se encaixe. E isso ainda acontece com muita frequência. Temos também questões dos estereótipos de narrativa “oriental” que surgem como forma de apropriação com foco na comercialização de narrativas. Um exemplo claro pra mim é de outra obra literária, escrita por uma autora coreana, que ganhou adaptação para série.

No livro temos a história que retrata desde a infância de uma personagem, passando por diversas fases de sua vida, com ela se tornando mulher, mãe, avó e, o detalhe mais importante, uma imigrante. Na série para streaming, suavizaram seu modo de agir, conforme as circunstâncias, e mudaram totalmente o enfoque da história ao reduzirem a uma espécie de história de amor em tempos de guerra, o que me incomodou bastante. Hoje ainda temos muitas pessoas não-amarelas que se debruçam para entender esses contrapontos, principalmente históricos e culturais, mas é uma força pequena contra uma maré muito mais forte e formada pela estrutura social majoritariamente branca e eurocêntrica.

Como importante adição ao texto e bate-papo, o vídeo do Leo Hwan complementa brilhantemente a opinião sobre a obra de R.F. Kuang e que serve como o início de toda reflexão que esta obra oferece.

A Impostora é um livro que provoca uma reflexão necessária sobre autoria, ética e as barreiras invisíveis que ainda moldam o sucesso na literatura contemporânea. Kuang demonstra uma habilidade excepcional ao criar uma protagonista complexa que, embora moralmente condenável, reflete comportamentos e estruturas de poder que ressoam em nossa sociedade.

Através de uma escrita afiada e uma narrativa implacável, Kuang levanta questões que desafiam o leitor a confrontar seu próprio entendimento sobre quem tem o direito de contar certas histórias – e o que isso revela sobre as dinâmicas de raça e poder no mundo literário.

Veja mais sobre Livros e HQs!

Inscrever-se
Notificar de
guest

0 Comentários
mais antigos
mais recentes Mais votado
Feedbacks embutidos
Ver todos os comentários
Pin