A Darkside Books consolidou sua reputação como editora de referência para grandes obras de mangá ao trazer para o Brasil uma seleção cuidadosa de títulos de Osamu Tezuka, o lendário “Deus do Mangá“. Três publicações em particular demonstram não apenas a evolução artística e temática do mestre japonês, mas também a importância histórica dessas obras no contexto da produção mundial de mangás: “O Livro dos Insetos Humanos“, “Engolidos pela Terra” e “A Feiticeira da Tempestade“. Cada uma delas marca um momento distinto na carreira de Tezuka e reflete as mudanças profundas que ocorreram no mangá contemporâneo.
A evolução de um gênio
Para compreender a relevância dessas três publicações, é fundamental lembrar que Osamu Tezuka revolucionou completamente a linguagem dos quadrinhos japoneses após a Segunda Guerra Mundial. Influenciado pelo cinema americano e pelas técnicas teatrais ocidentais, Tezuka introduziu a perspectiva cinematográfica aos mangás, com closes, efeitos de movimento e uma narrativa dinâmica que tornaram seus trabalhos incomparáveis.

Ao longo de sua vida, criou mais de 700 títulos de mangá e 70 animes, consolidando sua influência não apenas no universo dos quadrinhos, mas também em cinema e literatura. As três obras publicadas pela Darkside Books representam diferentes fases dessa evolução criativa, revelando como o autor se reinventou constantemente enquanto mantinha sua visão humanista e crítica da sociedade.
Uma sátira corrosiva sobre o poder feminino

“O Livro dos Insetos Humanos” é, sem dúvida, a obra mais provocadora dessa trilogia. Publicado originalmente na revista Play Comic entre maio de 1970 e fevereiro de 1971, o mangá foi concebido como uma sátira aguçada que compara a sociedade humana à dos insetos. No centro da narrativa está Toshiko Tomura, uma jovem ambiciosa e misteriosamente talentosa que transita entre as mais diversas áreas de atuação, do teatro ao design internacional, passando por uma carreira de escritora premiada.
Toshiko é uma metamorfose vivente, uma borboleta em constante transformação que seduz, manipula e destrói tudo à sua volta para alcançar o sucesso. A obra desafia frontalmente os clichês sexistas do mangá seinen, com seu foco voltado ao público masculino adulto. A importância histórica de O Livro dos Insetos Humanos reside justamente nessa coragem em abordar temas tabu na cultura japonesa dos anos 1970 como, por exemplo, a desigualdade entre gêneros, sexualidade, materialismo desenfrenado e a busca por sucesso a qualquer custo.

Era uma obra perigosamente contemporânea para sua época. A edição brasileira da Darkside Books foi lançada em julho de 2022, seguindo uma das versões em volume único do mangá original, e conta com textos inéditos de Paul Gravett e Helen McCarthy, dois dos maiores pesquisadores de quadrinhos asiáticos contemporâneos.
Experimentação e traumas de guerra

Se O Livro dos Insetos Humanos é provocação política e social, “Engolidos pela Terra” é um convite para conhecermos a experimentação formal e temática. Publicado originalmente na revista Big Comic entre 1968 e 1969, este mangá reflete uma fase distinta da carreira de Tezuka, em que o Deus do Mangá busca por sua própria exploração e risco criativo.
A narrativa é ambientada durante a Segunda Guerra Mundial, especificamente na batalha da ilha de Guadalcanal. Um prisioneiro de guerra tenta realizar uma fuga impossível e é abatido, servindo como ponto de partida para uma história que explora os traumas do pós-guerra japonês com precisão cirúrgica. A obra vai muito além de uma simples narrativa de ação: toca feridas abertas por sistemas patriarcais, capitalismo e falsas promessas da tecnologia, com uma toada de suspense que surpreende a cada página.

Neste mangá, Tezuka experimenta com uma narrativa de suspense com pitadas de comédia que disseca a sociedade patriarcal moderna com sarcasmo contundente. O trabalho artístico é notavelmente mais sombrio e complexo do que suas obras anteriores, demonstrando que o Tezuka não tinha medo de se reinventar e explorar novos territórios criativos.
Magia, heroínas e resistência

Mudando completamente de tom, “A Feiticeira da Tempestade” reúne três histórias publicadas na década de 1950, em um período anterior aos dois mangás já mencionados, mas que, paradoxalmente, marca uma expansão do público leitor de Tezuka. A coletânea inclui a história que dá título ao livro, ambientada no Japão Feudal, além de “Agência de Detetives Kokeshi” e “Anjo Pink”.
A história que da nome à publicação retrata duas jovens envolvidas em uma conspiração mágica. Ruri, filha da rainha do castelo Kuwagata, nasce com aparência de bruxa após um pacto feito entre a rainha e uma feiticeira. Enquanto Hakobe, filha da mágica, nasce com aparência graciosa mas com um coração bondoso que contraria as intenções maléficas de sua mãe. É uma narrativa de conflito, redenção e superação que oferece às jovens leitoras protagonistas femininas fortes e resilientes.

O que torna A Feiticeira da Tempestade especialmente importante é seu propósito educativo progressista. Helen McCarthy, pesquisadora britânica premiada e autora de The Art of Osamu Tezuka: God of Manga, explica que Tezuka buscava “não apenas transportar os leitores, especialmente as meninas, ao mundo fantástico e lúdico, mas também despertar suas qualidades e incentivar sua confiança, estimulando a seguirem seus próprios caminhos e verdades”. Em uma época em que a indústria do mangá era amplamente dirigida por homens e para homens, essa abordagem era revolucionária.
Progressão temática no Estilo Tezuka
Observando as três obras em sequência cronológica de publicação, torna-se evidente a progressão temática e estilística de Osamu Tezuka. A Feiticeira da Tempestade (1950) representa o Tezuka criativo e imaginativo focado no público infantojuvenil, especialmente em meninas, com histórias mágicas em que a magia serve como metáfora para empoderamento pessoal.

Engolidos pela Terra (1968) mostra um Tezuka em uma fase experimental, explorando narrativas mais maduras e complexas, engajado em crítica social incisiva. O tom muda drasticamente, pois não há magia, apenas realismo brutal disfarçado de suspense cômico. É quando Tezuka começa a explorar os traumas históricos do Japão pós-guerra com uma lucidez que poucos artistas possuíam.
O Livro dos Insetos Humanos (1970) representa o ápice dessa evolução crítica. Aqui, Tezuka abandona qualquer pretensão de ingenuidade temática e entrega uma sátira corrosiva sobre poder, gênero e moralidade. As histórias infantojuvenis cederam lugar a narrativas para adultos onde os conflitos não são resolvidos por redenção mágica, mas por intriga psicológica e poder manipulativo.
Essa progressão revela um artista em constante questionamento de si mesmo, nunca satisfeito com a repetição, sempre buscando expandir os limites daquilo que o mangá poderia expressar.
As edições da Darkside Books
A Darkside Books merece reconhecimento especial pela forma como publicou essas três obras no Brasil, pois ela não apenas trouxe esses títulos para o português, mas fez respeitando a importância histórica de cada um. As três obras fazem parte de um esforço maior da Darkside em consolidar sua coleção de Tezuka como referência em português. É também a reafirmação de que Osamu Tezuka não foi apenas um criador de entretenimento, mas um intelectual engajado que usou o meio dos quadrinhos para questionar poder, gênero, história e moralidade.

O Livro dos Insetos Humanos permanece como uma das críticas mais ácidas ao patriarcado, Engolidos pela Terra se destaca como exploração de traumas históricos frequentemente ignorados, e A Feiticeira da Tempestade representa o Tezuka humanista preocupado com empoderamento de suas leitoras mais jovens.
Juntas, essas três publicações mostram por que Tezuka merecia seu título de “Deus do Mangá”. Não era deus porque criava bem, mas se tornou um deus porque reinventava constantemente o que o mangá poderia ser e dizer. A Darkside Books compreendeu perfeitamente esse legado e o trouxe para leitores brasileiros de forma digna dessas obras maiores. Para quem deseja compreender a evolução da linguagem mangaística do pós-guerra e o genialidade criativo de seu maior protagonista, essas três publicações são essenciais.