Quando pensamos nas histórias mais antigas de sci-fi, autores como Mary Shelley, Júlio Verne e H.G. Wells são os citados como os progenitores do gênero. Mas já parou para pensar em qual foi a primeira história de ficção científica já escrita? Ela é de autoria de ninguém menos que o matemático e astrônomo alemão Johannes Kepler.
O romance “Somnium” (“O Sonho”) foi escrito por volta de 1600. Se trata de um relato ficcional de um jovem astrônomo que viaja para a Lua e conhece habitantes extraterrestres, que não eram meras recriações da vida terrestre, mas formas de vida inteiramente novas e adaptadas às condições lunares. Alguns usavam barcos, indicando que na Lua não havia apenas vida, mas vida inteligente e não humana.
Ao mesmo tempo que é uma obra-prima imaginativa da literatura, o romance também funciona como um documento científico. Ele foi escrito antes de Galileu apontar a primeira luneta para o céu e antes mesmo que o próprio Kepler olhasse através de um telescópio.
Imagine como isso deve ter sido chocante para a época.
Ainda mais chocante era o conceito de que o protagonista cientista chamado Duracotus viajou até a Lua com a ajuda de seres que Kepler chamou de “daemons”, uma palavra latina que, antes de ser apropriada pelo cristianismo para representar o mal, correspondia a espíritos benignos por natureza. No enredo, os seres se comunicaram primeiro com a mãe do herói, uma bruxa que lançava feitiços.
As semelhanças entre o protagonista e Kepler levaram a igreja católica a suspeitar que o livro se tratava de um relato autobiográfico sobre ocultismo. Os boatos começaram a circular, e a mãe de Kepler foi presa por bruxaria e sujeita a territio verbalis, uma tortura psicológica que consistia em descrever detalhadamente as torturas que a aguardavam, junto de apresentações de várias ferramentas de tortura.
Kepler levou cinco anos para conseguir libertá-la e conseguiu impedir que sua mãe fosse executada pela igreja.
A obra foi publicada pelo filho seu filho Ludwig apenas em 1634, quatro anos após a morte de Kepler.
“Embora tenha sido a intenção de Kepler supervisionar pessoalmente a publicação e seu manuscrito, seu trabalho final e póstumo começou como uma dissertação em 1593, que abordava a pergunta que Copérnico fez anos antes: “Como os fenômenos que ocorrem nos céus pareceriam a um observador estacionado na Lua?”, conta o autor Gale E. Christianson.
Kepler havia chegado sob o poder do modelo heliocêntrico como estudante da Universidade Luterana de Tübingen meio século depois que Copérnico publicou sua teoria.
“Dezesseis anos depois e longe de Tübingen, ele concluiu uma versão ampliada, reformulando em uma estrutura onírica, Kepler se sentiu livre para sondar ideias sobre a Lua que, de outra forma, não poderia”, explica o professor americano Andrew Boyd em um episódio do programa de rádio Engines of Our Ingenuity.
No episódio “A Harmonia dos Mundos”, da série Cosmos, de Carl Sagan, o cientista conta como Kepler foi perseguido pela igreja como ele escreveu a primeira história de ficção científica.
“Ele realmente acreditava que um dia os seres humanos lançariam navios celestes com velas adaptadas às brisas do céu, cheias de exploradores que não temeriam a vastidão do espaço”, diz Sagan.
Outro romance do gênero que não ganhou tanta popularidade quanto os de autores mais famosos, é o “The Blazing World”, uma obra de sci-fi de 1666 escrita por Margaret Cavendish, duquesa de Newcastle, que chamou seu livro de “texto hermafrodítico”.
“Somnium” (“O Sonho”) foi publicado no século 17, centenas de anos antes do que é considerado o início do gênero do sci-fi. No entanto, ele é defendido por autores e historiadores como a primeira história já escrita do gênero.
Algo que o autor britânico Adam Roberts também sustenta em seu livro “A Verdadeira História da Ficção Científica – Do Preconceito à Conquista das Massas”, uma obra densa de 700 páginas que investiga a origem e evolução do gênero, analisando evolução das narrativas de sci-fi e como elas conversaram com as revoluções científicas ao longo da história.
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