Entrevistas Mundo Geek Música

Brasil: um coração sempre disponível para Krishna Das [Entrevista]

Vir ao Brasil, para Krishna Das, é reencontrar “um coração sempre tão disponível”. Conhecido como o “rock star do yoga” e um dos principais responsáveis por popularizar os cânticos devocionais do hinduísmo no Ocidente, o cantor retornou ao país após 14 anos para uma nova turnê.

Trouxe o que não é exatamente um show, mas sim um kirtan, palavra em sânscrito que descreve perfeitamente o que o público encontra: uma reza musical coletiva, parte da prática milenar e espiritual hindu.

Quando as cortinas se levantam, vemos um altar, frutas, velas, os integrantes sentados e uma enorme estátua de Hanuman ao fundo. A divindade, conhecida popularmente como deus-macaco, é símbolo de força, devoção e serviço . Uma explicação simplista, porém direta para quem nunca ouviu falar.

Basta ouvir os cânticos entoados por sua voz potente para entender melhor. Embora leve o nome de Krishna, Krishna Das “sempre foi um cara de Hanuman” ,  ainda que, como narra o Mahabharata, Hanuman também tenha servido a Krishna em batalha.

Explicação reforçada por Neem Karoli Baba, Maharaj-ji, guru de Krishna Das, ao dar a ele esse nome. Antes disso, no início de sua jornada no templo de Kainchi Dham, na Índia dos anos 1970, era chamado por ele de “o motorista”.

Neem Karoli Baba, Maharaj-ji

Não devemos dar tanta importância assim aos nomes, mas sim aos lugares internos que acessamos ouvindo os mantras, em momentos íntimos ou coletivos, e Krishna Das está presente em muitos deles: nascimentos, perdas, lutos e transformações.

Quem chora, ri, dança e mergulha dentro de si, sentindo emoções que talvez nem consiga nomear, experimenta o amor incondicional de Hanuman e Maharaj-ji através de sua voz. Por isso, é bonito observar as reações do público ao longo de quase três horas de apresentação – um tempo que nem se sente passar. 

Ainda que todos entoem as mesmas rezas e compartilhem os mesmos sons, cada pessoa experimenta o kirtan à sua maneira. Afinal, a mesma experiência pode atravessar dois corações de formas completamente distintas, algo que Krishna Das faz questão de ressaltar.

Sua trajetória é longa. Viveu anos na Índia, sob a luz de Maharaj-ji, contraiu hepatite, conheceu muitos santos, enfrentou seus próprios demônios e descobriu o que fazer ao voltar aos Estados Unidos, um retorno que resistia em aceitar, mas decidido pelo guru. 

Foi ao se deitar no chão, em reverência, para se despedir dele, que ouviu a própria voz ressoar em pensamento: “eu vou cantar para você nos EUA”.

Algum tempo depois, entendeu que precisava compartilhar sua prática com o mundo. Desde então, tem iluminado o caminho de milhares de pessoas, de diferentes culturas e idiomas, no reencontro com seus próprios corações.

Aos 78 anos, segue nessa jornada e, agora, veio ao Brasil com a turnê Peace of My Heart. Por trinta minutos, tive uma conversa honesta com ele, que subverte idealizações e desconstrói projeções em sua imagem com leveza e humor sagaz.

Recusa o título de guru, mas escuta com atenção plena quem se aproxima, postura que faz do kirtan um lugar de presença, vulnerabilidade e compartilhamento. Foi exatamente essa entrega que marcou seu workshop no WTC, em São Paulo, no dia 6 de julho, onde compartilhou histórias e aprendizados, como este:

“Dizem que o Karma determina quanto tempo passamos com alguém. Pode durar segundos, dias, anos. Não é destino imutável, mas fruto das nossas escolhas. Nossa realidade é resultado disso”.

Como é voltar ao Brasil em uma turnê depois de 14 anos?

Está sendo ótimo. Eu adoro cantar para as pessoas aqui. Há uma alegria e uma facilidade em deixar levar para um lugar mais aberto— nossa entrevista é interrompida quando alguém entra por uma porta, passa por nós e sai pela outra. Ele se levanta, fecha as duas portas, ri e continua,— tá vendo? É disso que estou falando. 

Ontem foi muito divertido apresentar a banda, porque tenho dois brasileiros comigo. Tocar com Christiaan Oyens e Eliza Schinner tem sido uma alegria. Conheci os dois aqui no Brasil há alguns anos, eles moram na Europa agora, e quando vou para lá, nos encontramos. Agora que vim para o Brasil, trouxe eles comigo.

E o que você espera que sua música traga para nós desta vez?

É uma pergunta engraçada, porque o que eu compartilho com as pessoas vem da minha prática espiritual, que basicamente é o que faço para mim mesmo. 

Acontece que, com o tempo, acabei incluindo todo o resto do mundo nisso.

Muitos anos atrás, eu estava muito infeliz e deprimido, vagando de um quarto para o outro. Naquele momento, entendi que, se não cantasse com outras pessoas — isso foi muito antes de eu ter uma banda — , nunca teria a chance de limpar as sombras do meu coração.

Demorou um tempo para que isso acontecesse, mas uma vez que você se dá conta de algo, não pode fingir que não sabe. Você sabe que sabe. Foi um processo gradual, pouco a pouco. Não era algo pensado para ser uma carreira, mas apenas uma forma de me salvar.

Então, quando canto para as pessoas, é uma experiência coletiva, todos nós juntos. Não espero que algo aconteça, simplesmente canto. Acho que isso pode assustar algumas pessoas: ter sua própria experiência. 

Não estou tentando dar algo às pessoas ou manipulá-las para que sintam algo. Estou apenas me movendo em direção a um lugar mais profundo dentro de mim e convido os outros a participarem disso.

Isso é muito importante: eu não estou tentando causar nada em você. Se eu estivesse tentando entreter ou simplesmente dar prazer, você sentiria algo diferente. O que faço é mais inclusivo: você é livre para sentir o que precisar sentir.

Acredito que todo mundo deveria fazer isso, ir ao encontro do próprio coração e das próprias questões. A prática devocional nos direciona para dentro de nós mesmos e nos dá a oportunidade de deixar ir algumas dessas questões.

Observando a reação das pessoas, foi tão intenso, elas sorriam, choravam, estavam absorvidas pelos sons e pela sua voz. Sua música com certeza pode nos tocar profundamente. Como é saber que você está presente em momentos tão significativos na vida delas — no nascimento, na morte, no luto, no amor e na dor?

Bem, é melhor do que ser procurado pelo FBI. 

Vou ser bem sincero com você: não sou eu. Parece que sou eu, eu entendo, mas são as bênçãos do meu guru.

Não estou tentando ser humilde, porque nem sou bom nisso. A verdade é que são as bênçãos dele. Foi ele quem criou tudo isso. Tudo o que estou fazendo é simplesmente distribuir seu prasad (presente, oferenda, bênção no hinduísmo).

Sou apenas um cara nesse universo, e ele não precisa de reconhecimento. Ele não precisa de nada. Ele é todo esse amor que nós buscamos. É isso que ele é. Então, quando eu canto e vocês cantam, todos nós sentimos a presença dele.

Ram Dass disse uma vez que você canta apenas para Maharaj-ji e que os outros simplesmente sentem esse amor através da sua música. Você sente a presença dele sempre que se apresenta? Se é que podemos dizer que existe um momento em que ele não está próximo.

É claro que existe. Eu simplesmente sou uma pessoa, apenas mais um ser humano ferrado, mas tenho essas bênçãos quando canto, e ele aparece. O resto da minha vida é assistir a seriados de serial killers, e depois, quando me sento para cantar, lá está ele.

Todo mundo pode encontrar sua própria prática, sua própria maneira de ir ao encontro de si mesmo. Essa é a minha forma de encontrar meu lugar dentro de mim, mas acabei incluindo outras pessoas. E isso vem do que disse antes, sobre a epifania que tive: eu precisava cantar com pessoas, não sozinho no meu quarto.

No seu livro “Cantar para Viver — Em Busca do Coração de Ouro”, você compartilha algumas Lilas (histórias) de Maharaj-ji, que são fascinantes. Poderia compartilhar alguma que não está no livro? Ou, qual a sua lembrança favorita dele?

Há tantas coisas… Nós vivíamos em torno de uma presença extraordinária. Vivíamos naquele amor que todos nós estávamos buscando, e que continuamos buscando. E ele estava lá: cintilando, amando, brincando com as pessoas. Mas, ao mesmo tempo, sempre estava pronto quando precisávamos.

São tantas coisas. O sentimento mais poderoso era: nós finalmente chegamos em casa. Nós estamos em casa. É isso. Nós conseguimos. Estamos em casa. Era o lugar onde queríamos estar, bem aqui.

Ele brincava com a gente, dizendo “eu vou transferir você”, e depois ria. As pessoas falavam “Baba, não faça isso”, mas ele realmente fazia isso. Nos levava até lá, fazia com a gente o que precisava ser feito, e depois nos mandava de volta para as nossas vidas.

É tão simples quando você se dá conta de que tudo o que sonhou é verdade. Que tudo o que você gostaria que fosse, tudo o que gostaria de sentir, tudo isso é real. E existe. E você pode encontrar.

É algo maravilhoso.

Como um ‘eterno buscador’, você sente que está mais perto de encontrar o que procura? Já encontrou, ou pelo menos começou a entender o que vai encontrar no final?

Sabe? Eu sou apenas um fantoche, e ele está puxando todas as cordas. Se eu for estúpido o suficiente para achar que sou eu, isso não funciona.

Eu não sei para onde estou indo, não sei como vai ser, e não me importo. Nesse ponto, tudo o que quero fazer é continuar servindo esse amor. É isso que eu faço. É isso que eu quero fazer. E é só por causa da graça dele que posso fazer isso.

Não sei se estou perto ou longe de encontrar alguma coisa, sinceramente. Quando olho para mim, só vejo um monte de merda, então nem olho mais. Já sei o que está lá.

Continuo me movendo. Cantando. Tento não me preocupar mais tanto com isso. Não é da minha conta.

Nem ao menos é a minha vida. É a vida dele. Essa vida se parece com a minha, eu entendo. Você olha para mim e acha que sou eu, mas é ele quem está fazendo tudo.

É assim que eu me sinto. E não espero que ninguém acredite em mim. Se quiserem me jogar num hospital psiquiátrico… venham me visitar.

Bem… isso se parece como uma entrega verdadeira para mim.

Bem… se parece como uma entrega verdadeira em alguma parte do tempo.

Acredito que muitas pessoas — inclusive eu — se identificam com o fato de serem ‘eternas buscadoras’. Isso às vezes pode causar ansiedade, mas também pode ser algo bonito, uma maneira de vivenciar verdadeiramente a nossa jornada particular. Que mensagem você compartilharia com alguém que também está nesse caminho, buscando algo que talvez nem saiba o que é?

Acontece que todo mundo sabe o que é. Se não soubessem, não estariam buscando. Todo mundo sente que quer algo, e sabe o que é, então está procurando por isso.

O grande problema é que buscamos em lugares externos. Temos uma mira ruim. Queremos amor, mas alcançamos outra coisa. Procuramos amor fora de nós mesmos.

É isso que o mundo faz: coloca tudo do lado de fora e acaba blindando o que está dentro.

As pessoas costumam dizer: “eu não estou feliz, então é culpa sua, é culpa do mundo.”

O mais importante é não desistir. É continuar sintonizando com o próprio senso de direção e parar de bater a cabeça contra as paredes.

Uma hora ou outra vem a compreensão: não preciso mais bater a cabeça nessa parede.

É tudo parte do aprendizado. E não existem erros. Nós apenas não somos tão inteligentes assim.

Fazemos as mesmas burradas repetidamente. Achamos que, espremendo uma pedra, vamos tirar água dali. E continuamos espremendo pedras, vemos nossas mãos sangrarem e pensamos: “o que está acontecendo aqui? Cadê a água?”

Mas a água não está na pedra. Está na água.

Estamos procurando algo nos lugares errados. Não está do lado de fora. Está dentro.

Ao ler sobre sua relação com Maharaj-ji, algo ressoou profundamente em mim: nem sempre sabemos como lidar com o amor. Por isso, muitas vezes sofremos com ele. No mantra Sri Argala Stotram, você canta “Eu quero saber o que é o amor, quero que você me mostre”. Como sua compreensão do amor mudou ao longo do tempo? Hoje, o que isso significa para você?

Amor é o que resta quando você se livra de todo o resto. Quando nos livramos da vergonha, do medo, do luto, do egoísmo. Quando deixamos isso ir, o que resta é o amor.

O amor que já somos. E, na maioria das vezes, não conseguimos amar a nós mesmos. Mas isso é algo programado na nossa mente. Nosso trabalho é nos livrar desses padrões.

Quando você se dá conta de que existe esse condicionamento, começa a se libertar. E é por isso que a prática espiritual é tão importante. Aprender a acalmar um pouco a própria mente ajuda a reprogramar isso.

Sente-se e medite por cinco minutos. Tente não pensar em nada. Quando perceber que está pensando, volte a soltar. Isso vai acontecer repetidamente.

E quando você notar que se perdeu, na verdade não se perdeu. Esse é o momento em que percebe que precisa voltar. Você não se agarra a esse instante. Apenas retorna.

Pouco a pouco, vai se encontrando mais profundamente consigo mesmo. E vai ficando mais possível desapegar dessa mente programada.

Tentar deixar ir sem permitir que a mente se acalme é difícil. Acreditamos em tudo o que pensamos — e essa é a definição de insanidade.

Mas, se praticarmos o deixar ir todos os dias, mesmo que por cinco minutos, começamos a nos acostumar com isso. Aos poucos, vamos na contramão de tudo o que o mundo diz o tempo todo.

Em um mundo onde tudo é tão imediatista, se transforma rapidamente e, ao mesmo tempo, é superficial, sua música se mantém estável. Como é acompanhar tantas transformações ao longo das décadas? Como você se vê transformando sua carreira, e sua própria vida? 

Uma das coisas que acontecem conforme você pratica mais é que a forma como você se sente se torna menos importante. Você para de pensar tanto em si mesmo. E isso é maravilhoso. É como tirar férias.

Porque tudo o que fazemos a vida inteira é pensar em nós mesmos: como estou agora? Do que eu preciso? O que ainda não tenho? Sou bom o suficiente? Alto o suficiente? Baixo o suficiente? Eles gostam de mim? Devo fazer isso? Devo fazer aquilo?

Gastamos a vida inteira nisso.

A prática espiritual permite que você se mova mais profundamente para dentro de si. E, aos poucos, como você se sente deixa de ser o centro do universo.

Todo mundo que você vê, tudo o que fazem é pensar em si mesmos. São bilhões de pessoas acreditando que são a coisa mais importante do universo.

Mas isso não é verdade. Isso é ego.

Ego não é algo real. Se você procurar, não vai encontrar. Não é uma coisa. São apenas pensamentos , e pensamentos que todo mundo acredita.

Só que a gente não precisa acreditar neles.

A prática espiritual permite mudar as histórias que contamos para nós mesmos. Porque essas histórias não são verdade.

Estamos tão interessados em saber o que você pensa e como se sente. Algumas pessoas podem te olhar e, muitas vezes, te enxergar como um guru. Como é isso?

Deus me livre. É terrível. 

Um verdadeiro guru sabe e se torna tudo o que há no universo. Não precisa de nada. Não quer nada. 

Eu conheci alguns deles. E sei que não sou um. 

Um verdadeiro guru pode te transformar , e é isso o que acontece quando eu canto. Não sou eu. Eu não posso fazer isso. De verdade. Mas ele pode. É a presença dele. É a graça dele. 

Eu poderia mentir e dizer outra coisa, mas é melhor falar a verdade.

Durante a pandemia, você fazia lives semanalmente e abria perguntas ao público. Um dia, em meio a um período conturbado de questões políticas e climáticas, compartilhei minha angústia, e você me disse: “cuide de você mesma, o que mais você pode fazer?”. Desde então, tenho feito isso. Me transformei, com sua ajuda, e acredito que muitas outras pessoas também. Sinto que, hoje, muitos ainda não se dão conta dos sintomas que permaneceram conosco desde aquele período. Hoje, olhando para aquele momento, o que você percebe que mudou no mundo e nas pessoas desde então?

Acho que muitas pessoas ficaram com medo de suas próprias mentes ,  e isso continua criando consequências. Algumas pessoas se trancaram dentro de si.

Você consegue sentir o medo nelas, mas não é sobre o mundo exterior. É sobre o que elas veem nele e projetam a partir do que carregam por dentro.

Medo de outras pessoas, de situações, da natureza, de bombas, de guerras. O medo vem da mente. Se as pessoas cuidarem da própria mente e dos próprios corações, o mundo será um reflexo disso.

O mais importante é que cada um de nós cuide do próprio coração e tente, o melhor que puder, não criar sofrimento para si nem para os outros.

É quase impossível fazer isso, mas tentar já é uma grande coisa.

Porque criamos sofrimento o tempo todo. Desde quando começamos o dia e nos olhamos no espelho.

O problema é que muitas pessoas não conseguem ver nada fora disso, e acabam caindo nesse abismo de medo constantemente. 

Então, o que podemos fazer? Cuidar das nossas próprias questões. E incluir os outros nesse cuidado.

Jornalista, comunicadora, cofundadora do Nerdizmo e eterna curiosa. Se me encontrar por aí, provavelmente estarei com um livro, um caderninho, uma caneta e fones de ouvido. Estou sempre explorando temas diferentes, de ciência à música. Adoro um bom papo sobre qualquer assunto e mantenho os ouvidos e olhos abertos para novas histórias. Tem alguma para me contar?

Inscrever-se
Notificar de
guest

0 Comentários
mais antigos
mais recentes Mais votado
Feedbacks embutidos
Ver todos os comentários
Pin