É muita responsabilidade quando um filme se propõe a abordar questões morais arraigadas na sociedade, sem entregar resposta fáceis ou levianas. A audácia da diretora Nadine Labaki ao abraçar tantos temas em um único filme é feita com maestria, em Cafarnaum.

A profundidade que Nadine explora questões polêmicas como superpopulação, responsabilidade parental, dignidade humana e caos socioeconômico não ousa responde-las, mas trazê-las à reflexão do público, ao oferecer um filme que pode ser confundido por vezes como um documentário.

Cafarnaum traz um olhar amplo sobre um cenário que explora como meio age na complexidade humana, especialmente a pobreza. Algo sugerido logo na primeira cena, quando a imagem aérea das favelas de Beirute caem logo em seguida a uma perspectiva próxima dos que vivem ali.

Crianças se divertem com armas de brinquedo, em um lirismo que mostra a maneira lúdica das crianças experimentarem a realidade. O mesmo que retorna mais tarde com a câmera lentamente passando pelos rostos dos imigrantes em celas.

A poesia no olhar inocente do ser humano alheio à sua realidade, seja nos das crianças ou dos adultos desprovidos de educação e meios básicos que conferem a dignidade.

Com a proposta de que não há resposta fácil diante da constelação que é cada ser humano, cada ação, cada vida, história ou como cada um reage ao contexto que está inserido, Cafarnaum começa a dar forma ao que seu nome propõe: em seu significado, “Caos”.

Diante da pobreza e como ela age na vida das pessoas, como é possível encontrar o vilão ou único culpado? A única possibilidade cabível é que, haverá muitas vítimas, em menor ou maior grau. Sendo a maior delas, a inocência das crianças.

Cafarnaum: quem são as crianças em meio ao caos?
Cafarnaum

Quem carrega esta mensagem é Zain, um entre os vários irmãos de uma família que se desdobra em malabarismos para se sustentar, enquanto vivem em um cortiço sem acomodações e recursos básicos.

A forte perspectiva das crianças neste caos é ressaltada com a câmera filmando sempre na altura delas. Sendo elas, as protagonistas, como a jovem vendedora ambulante e Yonas, o bebê filho de Tigest, uma imigrante que acolheu Zain.

São nos diálogos que fica claro como a ruptura da inocência é essencial à sobrevivência, e também como a mente é poderosa ao mantê-la, de alguma maneira, com a visão fantástica sobre a realidade aos olhos de uma criança.

Zain mostra esta verdade quando vai ao tribunal, por vontade própria, para processar seus pais por terem o trazido ao mundo, e quando conta como Yonas (quem ele acolhe como irmão) tem a pele escura porque sua mãe tomou muito café durante a gravidez.

Nadine oferece uma oportunidade às crianças a falarem quem são elas meio ao caos. E sustenta sua defesa em nome delas em uma participação simbólica como advogada do menino.

A atmosfera filme-documentário magnetiza especialmente ao deixar de lado recursos de trilha sonora, abrindo espaço para os mais diversos sons produzidos pelo cotidiano, que dão os contornos para uma obra próxima à realidade.

É impossível ver o mundo com os olhos do outro, algo próximo apenas do que faz o cinema, uma ferramenta empática poderosa, quando bem usada.

Zain empresta seus olhos, e nos convida à uma caminhada ao seu lado, mostrando tudo o que ele vê, como se sente. Uma realidade que acontece a todo momento, longe dos nossos olhos.

O espectador voluntariamente se despe de suas convicções engessadas ao enxergar algo além do seu entorno e ao ver que não há resposta fácil quando se considera uma ampla e complexa realidade. 

A mensagem é mais forte quando descobrimos que o protagonista Zain Al Rafeea é um refugiado sírio, que vive no Líbano há oito anos, e interpreta ele mesmo no filme.

E a gente fica com o olhar genuíno de quem já viu muito, carrega nas costas o peso do mundo e no sorriso a esperança e melancolia sobre o que futuro promete.

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