As memórias e os sentimentos estão interligados. Jogar Tony Hawk Pro Skater 1+2 vinte anos depois dos títulos originais despertou em mim um turbilhão de sensações.

Eu cresci com controles de videogames nas mãos, graças ao meu pai e meu irmão. Os dois gamers de longa data são uma representação fiel de como a paixão pelos games é um legado a se deixar para novas gerações. Veja bem, reza a lenda de que eu aprendi a dar os primeiros passos para buscar o controle que estava longe – pelo menos essa é uma história que meu pai conta, todo orgulhoso.

Fui uma criança que teve o privilégio de crescer em uma locadora de videogames, que era dos meus pais. Onde crianças e jovens se reuniam para alugar jogos, primeiro as fitas e mais tarde os CDs, ou também pagavam para jogar por determinado tempo.

Como toda memória vem acompanhada de sentimentos, eu tenho vários flashbacks daquela época, que quando me vêm à tona, despertam uma sensação de alegria genuína – uma verdade de que, ali, eu fui uma criança extremamente feliz. Não tinha como ser diferente.

Imagine só, o que os meninos pagavam para fazer, eu podia fazer de graça. Acompanhei de perto as transformações das gerações de jogos. Além de tudo, eu era uma menina, que dava um pau nos moleques mais velhos no Street Fighter. Podemos dizer que minha autoestima foi construída em partidas ganhas contra marmanjos e em ser “boa no videogame”.

Um game pode trazer inspirações que acompanham por toda a vida

Com Tony Hawk foi um pouco diferente. Naquela época, aquela sala que antes ficava cheia de jovens loucos para jogar e comprar jogos, se transformou novamente em uma sala de visitas comum na casa dos meus pais. A popular “Star Games” já tinha ficado apenas na lembrança.

E, desse jogo, eu tenho imagens bem vívidas na memória. Afinal, foram horas e horas aprendendo manobras, tentando fazer o maior número de pontos, ultrapassar meus limites, desvendar a mecânica… e tudo isso acompanhado de uma trilha sonora que moldou meu gosto musical. Até hoje, o punk é meu gênero musical preferido, principalmente porque ele tem esse gosto de nostalgia.

Naquele PlayStation 1 que eu dividia com meu pai e meu irmão, eu encontrei meu refúgio de todo aquele turbilhão de hormônios e transformações que a gente experimenta à medida que cresce.

Era tudo o que eu tinha: um sofá, uma TV e um videogame. E eu não precisava de mais nada.

O mundo se transformando ao meu redor. Meus pais indo trabalhar, meus irmãos também. Tudo acontecendo à minha volta. O meu corpo se transformava. E eu lá, aprendendo com os jogos coisas que nem eu mesma imaginava que seriam fundamentais muitos anos mais tarde, na minha vida adulta.

Tony Hawk ocupou grande parte dos meus dias. Enquanto eu precisava lidar com certas frustrações que o processo de amadurecimento traz com ele e entendia cada vez mais o mundo que me cercava, era através do skate, no jogo, que eu me resolvia comigo mesma. Ali, eu impunha novos limites para ultrapassar. Novos desafios para vencer.

Se eu fizesse aquilo bem, saberia lidar com qualquer coisa que o mundo real exigisse de mim.

O jogo me influenciou a comprar um skate. Eu não me lembro se era de aniversário ou natal, mas certamente eu infernizei meus pais o suficiente para me darem um. Se eu era tão foda no controle, haveria de ser também no skate real. Mas não foi bem assim.

Após boas quedas e frustrações, percebi que o jogo me fazia muito melhor. Também me contentei com os skates de dedo, muito populares naquela época. Daí me apeguei ao hobby de colecionar os pequenos skates e suas pecinhas, que eu cuidava e manuseava com enorme zelo.

Enquanto eu vivia absorta naquelas manobras, no meu mundinho particular de superação e aprendizagem, por vezes algum adulto parava ao meu lado, observando. Meu pai, meu irmão ou seus amigos. O meu maior prazer era ver suas reações e ouvir comentários surpresos que surgiam.

Tony Hawk 1 e 2 foram experiências que ficaram marcadas dentro de mim, mas que até então eram apenas memórias compartilhadas com outros gamers que eu conheci depois. Se eles levam a sério meus dotes, eu não sei.

A diferença no visual entre o game antigo e o novo.

A chegada de Tony Hawk Pro Skater 1+2 e a minha criança interior

Então, finalmente os dois jogos foram remasterizados. As mesmas fases. A mesma trilha sonora.

Eu posso garantir que é um misto de sensações poder jogar as mesmas fases, mas agora em qualidade gráfica inimaginável para o começo dos anos 2000. No começo, não me parecia ser o mesmo jogo. Mas deve ser porque eu já não era mais a mesma.

Vinte anos depois, e eu lá: com o controle de um videogame da nova geração em mãos, experimentando as fases antigas remasterizados com a tecnologia também da nova geração.

Aquela criança estava adormecida dentro de mim? Era eu e não era eu ao mesmo tempo. Era o mesmo jogo, mas não era.

O gameplay ainda é o ponto alto. E, posso dizer que esse é um dos títulos recentes mais bem-sucedidos da franquia. Ainda há manobras muito divertidas, como poder andar nas paredes ou escolher os comandos dos “supers” que você desbloqueia.

A sacada é fazer os maiores números de pontos e realizar desafios para conseguir desbloquear outras fases. Entre eles, pegar todas as letras da palavra “SKATE”, espalhadas pelo cenário, além de tocar sinos ou encontrar fitas cassetes secretas. Um ótimo meio de fazer pontos é através de manobras e combos.

A diversão realmente está nas manobras que você consegue pegar o jeito à medida que descobre certo equilíbrio e macetes da mecânica.

Jogando a primeira fase, eu enfrentei a constatação: meu eu de 9 anos daria um pau no meu eu de 29 anos, no Tony Hawk. Em contrapartida, se eu me visse aos nove anos jogando, eu realmente ficaria orgulhosa.

Então, o jogo era o mesmo, mas exigia uma experiência diferente: dessa vez, eu iria travar um desafio comigo mesma para superar o meu eu de vinte anos atrás. Parece muito louco?

A fase da escola na remasterização do game Tony Hawk Pro Skater 1+2.

O game evoluiu, mas o mundo do skate também

O mais interessante é que o mundo do skate também sofreu transformações desde que Tony Hawk Pro Skater 1 foi lançado, em 1999. A versão remasterizada representa exatamente isso.

O mundo do skate era predominantemente masculino, ainda é, mas as coisas estão mudando a passos lentos. Assim como o mundo dos jogos.

Naquela época, eu cresci sabendo que tinha gosto por “coisas de menino”. Eu nunca tive uma amiguinha na escola que gostasse de jogar videogames, e ainda mais que se interessasse por andar de skate. Ou que gostasse de punk.

Quando Tony Hawk foi lançado, havia apenas uma skatista profissional como personagem jogável, Elissa Steamer, uma lenda do skate.

Na nova versão, três skatistas mulheres profissionais ganharam personagens: Lizzie Amaranto, Aori Nishimura e a brasileira Leticia Bufoni. Além de tudo, temos uma skatista não binária, Leo Baker.

A skatista de São Paulo, Leticia Bufoni, representada no game.

É importante notar também que há muitos skatistas não brancos no jogo. De Aori Nishimura a Nyjah Huston, é profundamente necessário que haja representatividade em um jogo sobre uma cultura que já foi, também, predominantemente branca.

Tony Hawk Pro Skater 1 + 2 mostra como pessoas de diferentes gêneros ou etnias são bem-vindas na pista de skate. Até por isso, nenhuma das roupas, penteados ou outras características de personalização do personagem estão ligados ao gênero do skatista que você escolhe criar.

Como mulher, que cresceu nos anos 90 em uma cultura gamer que ainda há muito para ser desconstruída em questão de preconceito, eu digo com toda a certeza que é um prazer testemunhar tais transformações.

O mundo dos games está cada vez mais sendo ocupado por meninas. O mundo do skate também.

Uma das experiências mais bacanas com Tony Hawk é essa percepção que o jogo traz.

Em um vídeo com entrevistas dos profissionais que ganharam personagens no jogo, a brasileira Leticia Bufoni conta que também cresceu jogando Tony Hawk. Ela também foi influenciada a comprar um skate, e como podemos ver foi muito mais bem-sucedida. Tão bem, que hoje é uma das melhores do mundo.

Naquela época, sem o gigantesco mundo digital de hoje, a nossa noção de realidade se limitava aos espaços que frequentávamos. Para mim, era meu bairro e minha escola.

Neles, eu não conheci nenhuma menina que jogasse ou gostasse das coisas que eu gostava. Porque, como eu disse, eram coisas de “meninos”. Por isso, eu estava sempre perto dos moleques. E isso não quer dizer que eu não sofria preconceito entre eles, mas isso é papo para outra hora.

Hoje, estamos caminhando para longe desse mundinho limitado e descobrindo que mulheres jogam videogames e meninas também andam de skate. Mulheres podem qualquer coisa, porque “coisas de meninas” é um conceito tão limitado que merece ficar bem guardado no passado como exemplo de um erro com o qual podemos aprender. E isso também serve para meninos.

O mundo do skate ainda é estigmatizado, assim como o dos games. Entretanto, eles têm oferecido espaço para se transformarem. Se tornaram inclusivos, embora ainda não o suficiente. Tony Hawk Pro Skater 1 e 2 vem para se comunicar especialmente com este momento de transformação.

Além de oferecer uma boa experiência nostálgica que pode ser uma explosão de sentimentos em um gamer que cresceu jogando as versões originais, é um novo jogo que hoje abraça os mais diversos tipos de jogadores pelo mundo afora.

A remasterização de Tony Hawk Pro Skater 1+2 mostra que o mundo se transforma e, se os jogos se transformam com ele, os jogadores também devem.

Na minha experiência, não é o mesmo jogo, embora ainda seja. O mais interessante de tudo, é que ele poderá cair em mãos de uma nova geração de jogadores que se sentirão mais representados e vão crescer sabendo que, independente de gênero ou etnia, eles podem e devem ocupar seus espaços.

Quem sabe daqui vinte anos não vemos uma estrela do skate surgir por inspiração pelo jogo? Ou, nos melhores casos, alguns podem ter uma boa história para contar.

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