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Em Um Ponto Zero a paranoia é a falha na matrix da realidade

Cisão esquizofrênica? Falha da racionalidade? Em geral o cinema figura a paranoia dentro dessas representações. Mas é no filme Um Ponto Zero (“One Point 0” aka “Paranoia 1.0”, 2004) que a paranoia evolui de simples transtorno mental para uma percepção especial: se em “Matrix” o déjà-vu era uma falha na realidade codificada, em “Um Ponto Zero” essa falha chama-se “paranoia” –  aproximando-se do insight do pensador gnóstico Valentim, lá no distante século II DC. A paranoia não só como uma “falha na racionalidade”, mas como a percepção da falha na própria sintaxe que estrutura a realidade. Um solitário programador de computador começa a receber misteriosas caixas vazias que o farão mergulhar em um universo cercado de câmeras de vigilância em um edifício residencial em ruínas, nano tecnologia, redes de computadores, e-mails infectados, um estranho vírus bio-cibernético, obscuros interesses corporativos e um estranho experimento em Neuromarketing.

Qual a natureza da paranoia? Há quem defina a paranoia como uma súbita falha da racionalidade, na qual perdemos a percepção de concretude da realidade: desejo e loucura, ilusão e realidade começam a perder as fronteiras, fazendo o sujeito penetrar em alguma fenda, na esperança de encontrar algo de verdadeiro do outro lado.

Se no filme Matrix (1999), o déjà-vu era a falha da realidade codificada, antecipando a chegada dos “Agentes Smiths”, em Um Ponto Zero (One Point 0, aka: Paranoia 1.0, Vírus 1.0 ou simplesmente 1.0) essa falha chama-se paranoia.

Os leitores mais antigos desse Cinegnose devem recordar-se que, para o Gnosticismo, a paranoia, ao lado da melancolia e do estado de suspensão (o esvaziamento da mente por meio da suspensão de todos os mecanismos de abstração da racionalidade), são estados alterados da consciência que propiciam a gnose. Respectivamente, correspondem às reflexões de três pensadores do Gnosticismo antigo: Valentim (II DC), Mani (III DC) e Basilides (II DC).

No caso da paranoia, a reflexão evolui da estrita concepção psicanalítica (a fantasia do sujeito de que o mundo está determinado a conspirar contra ele) para a concepção valentiana a partir de uma desconfiança radical em relação à própria ontologia do real – sua estrutura, propósito e existência.

Filmes como Show de Truman e Ilha do Medo mostram não só esses diferente tipos de paranoia, mas principalmente como os sistemas que vigiam a integridade do que chamamos como “realidade” tentam psicologizar esse estado, transformando o protagonista em alguém irremediavelmente doente – alguém incapaz de responsabilizar-se pelos seus próprios atos.

 

Lynch, Kafka, Cronenberg…

Um Ponto Zero foi mais um filme dessa safra sobre o tema paranoia que inspirou a mente dos roteiristas na virada de século: do som de um telefone analógico tocando (impingindo medo e ansiedade no protagonista) às câmeras de vigilância de um escuro edifício residencial em ruínas, nano tecnologia, redes de computadores e e-mails infectados, além da proximidade entre o vírus biológico e o informático.

Seguindo a estética cyberpunk com diversas alusões a Kafka (processos cujos propósitos escapam à consciência do protagonista), Lynch (perversões sexuais e bizarros perfis dos personagens de um prédio residencial em ruínas), Cronenberg (o desaparecimento das fronteiras entre sistemas biológicos e informáticos), estética noir (as certezas do mundo que se esvai em névoas e chuva), interesses corporativos, consumismo e neuromarketing.

Um Ponto Zero fará o leitor lembrar principalmente das cenas de abertura do filme Matrix (quando Neo acorda em seu apartamento e vê o seu computador invadido por estranhas mensagens), porém levando a paranoia para uma outra perspectiva: experimente imaginar esse tipo de sentimento levado ao seu próprio apartamento ou para o próprio prédio em que mora, transformando-o em um labirinto ameaçador – uma ameaça que poderia ser reduzida apenas a estranhos vizinhos ou que tudo na verdade poderia fazer parte de um estranho experimento envolvendo interesses corporativos e neuromarketing.

De qualquer forma, para aqueles estudiosos das conexões entre Gnosticismo e Cinema, Um Ponto Zero é uma ótimo estudo de caso sobre as representações da paranoia mas, principalmente, a diferença entre a paranoia “narcísica-freudiana” e a gnóstica.

 

O Filme

Simon J. (Jeremy Sisto) é um programador de computador solitário às voltas com prazos apertados para entregar uma linha de código de algum projeto corporativo indeterminado: um estressado gerente liga e envia e-mails constantemente para ele alertando sobre os prazos e ameaçando-o caso não entregue o trabalho.

Os ângulos de câmera são sinistros, close-ups assustadores e um apartamento com cantos escuros onde um velho aparelho de telefone com discagem convive com telas de computadores e nanotecnologia.

De repente, Simon começa a receber uma série de caixas vazias sem nenhuma identificação de remetente e cuidadosamente embaladas. Surgem do nada, do lado de dentro da porta de entrada, depois de momentos de distração ou sono.

Ele procura o síndico e proprietário do seu apartamento, para descobrir que ele possui um complexo sistemas de câmeras espalhadas por um prédio velho no melhor estilo cyberpunk de Blade Runner. Simon hackeia o sistema para tentar identificar o entregador das misteriosas caixas. Mas aos poucos, começa a ter bizarras alucinações, talvez resultado de algum tipo de estranho vírus de computador – aqui encontramos ecos temáticos de Cronenberg em eXistenZ (1999).

 

Há indícios de algum tipo de doença generalizada que começa a matar cada um dos moradores do edifício – os corpos são encontrados com o topo da cabeça retirado. Aos poucos, Simon vai entrando numa espiral de loucura sci-fi: será que ele também está contaminado por algum tipo de vírus nanotecnológico que invade os corpos para desintegrar o cérebro? E outro detalhe: por que Simon está bebendo litros de leite de uma marca determinada? Simplesmente ele tem impulsos de se dirigir ao supermercado do bairro para comprar várias embalagens do produto.

Aos poucos vamos conhecendo os estranhos moradores: Derrick (Udo Kier) que desenvolve um sofá auto-limpante com nanotecnologia e passa seu tempo construindo uma cabeça-robô senciente chamada Adam; e uma mulher chamada Trish (Deborah Unger), uma enfermeira misteriosa que trabalha em um hospital especializado em paciente com câncer; e ainda outro vizinho que experimenta um vídeo game em realidade virtual com perversões sexuais na qual o jogo confunde-se com a realidade – mais ecos de eXistenZ de Cronenberg.

Mas outras evidências vão se revelando: assim como Simon está obcecado por leite, Derrick tem uma geladeira cheia de latas de uma marca de refrigerante. E Trish vai no mesmo supermercado do bairro para comprar sucos da mesma marca do leite: Farm.

Um Ponto Zero é aquilo que os críticos chamam de um cyberpunk de “low technology” (o que cria uma atmosfera do futuro fascinante e sombria), além de ser um “mindfuck” – um quebra-cabeças para fundir os miolos do espectador com um fantástico design de som e uma atmosfera de crescente paranoia e insanidade.

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