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Jogos como arte: Quando um game se torna mais que uma forma de entretenimento?

Se você é um ávido jogador de videogames, já deve ter encontrado jogos que o tocaram profundamente, que o fizeram pensar, sorrir, chorar… Jogos que despertaram emoção de forma proposital, talvez mais do que qualquer filme, música ou livro tenha sido capaz. E, nesse momento, talvez você tenha pensado: “Isso é arte!”.

Talvez você não conheça o italiano Ricciotto Canudo e seu Manifesto das Sete Artes, e talvez também não conheça o filósofo Friedrich Hegel, mas provavelmente conhece os conceitos estabelecidos por eles. E não, você não confundiu o tema deste texto.

Friedrich Hegel estabeleceu uma lista que, provavelmente, você não conhece de cor, mas que elenca os tipos de arte. Artes sonoras (o som) como a primeira arte. Artes cênicas (o movimento) como a segunda. A pintura (a cor) sendo a terceira e a escultura (o volume) sendo a quarta. Já a quinta arte é a Arquitetura (o espaço) e, por fim, ele nomeou a Literatura (a palavra) como a sexta arte.

E é aqui que entra o já mencionado Ricciotto Canudo. Em seu “Manifesto das Sete Artes” (concebido em 1912 e publicado em 1923), Canudo defendeu a proposta de que o cinema era a tão citada sétima arte, representando o audiovisual, com uma junção de aspectos que compõem as outras artes, como o som, o movimento, a cor etc. Mas o que tudo isso tem a ver com jogos serem arte ou não?

O ponto é que, futuramente, o Manifesto das Sete Artes, assim como o pensamento de Hegel, deu espaço a outras ideias. Posteriormente, a Fotografia foi incluída como a oitava arte e os Quadrinhos como a nona. Mas eis que finalmente chegamos ao assunto deste texto: os videogames. Em algum momento, os jogos, também representando uma mescla de vários outros conceitos do que é arte, passaram a integrar essa lista como a décima arte.

Mas aqui entram uma série de questões. O que é arte? Tudo pode ser considerado arte? Se tudo é arte, todo e qualquer jogo pode ser considerado arte? Quando um jogo ultrapassa a barreira do entretenimento e se torna uma forma legítima de arte? A partir de que momento o jogo deixa de ser um simples produto e passa a carregar uma carga cultural, filosófica e emocional comparável a outras mídias, como o cinema, a literatura ou a pintura, a ponto de ser considerado, de fato, arte?

O conceito de arte e sua aplicação aos videogames

Definir o que é arte é um tanto quanto complicado, uma vez que ela é subjetiva e varia de acordo com o pensamento de cada um. Mas, essencialmente, arte envolve a expressão do artista de forma criativa, a transmissão de ideias e a capacidade de evocar emoções. Pensando dessa forma, jogos claramente se encaixam na definição de arte, afinal, eles tentam transmitir ideias e emoções ao jogador por meio de suas narrativas e dos estímulos visuais e sonoros que os compõem, além da interação do jogador com a obra.

Atualmente, a maior distinção dos jogos para os demais estilos de arte é justamente essa interatividade. Diferente de um filme ou um quadro, onde o espectador é passivo, ou seja, não participa da obra, os jogos são o contrário. Nele, o jogador é parte fundamental, e é justamente isso que traz essa conexão tão grande com a obra, uma vez que você se sente parte daquilo.

Claro, como em todo meio, existem produtos que são apenas… Produtos. Não possuem aquela “alma” e (talvez) não possam ser definidos como arte. E, obviamente, isso também ocorre no mundo dos videogames, e não há mal nisso, no final das contas. Jogos que se sustentam em ser somente um produto de entretenimento, especialmente jogos multiplayer, como Fortnite e eFootball, preocupam-se muito mais com a experiência de competição do que em evocar uma mensagem ou emoção para o consumidor.

Mas e quando o jogo se propõe a não ser somente um produto vendável, mas sim algo a mais… Ele não quer ser somente um game AAA ou ser um “jogo como serviço”. Aí é que entram alguns elementos que o definem como arte.

Estética e visual: O impacto artístico dos games

Na grande maioria dos casos, o visual é a primeira forma de impacto que temos quando estamos conhecendo um jogo e é parte crucial do que define aquele game em específico. Ao longo dos anos, os jogos evoluíram para oferecer experiências visuais dos mais variados tipos, desde as pixel arts, que deixaram de ser uma limitação gráfica para se tornar um estilo, até os gráficos ultrarrealistas presentes em muitos jogos.

A definição do motor gráfico dos jogos faz total diferença naquilo que o jogo pretende oferecer e causar no jogador. Peguemos dois exemplos: Journey, com seu minimalismo e paleta de cores evocativa, e Okami, que se assemelha a uma pintura tradicional japonesa. São dois estilos gráficos totalmente diferentes e que servem ao propósito ao qual o jogo se aplica. E, claro, isso não é à toa. Você conseguiria imaginar algum jogo da franquia Call of Duty com os gráficos de Okami ou, ainda, The Last of Us com gráficos menos realistas, como os de Fortnite? Eles até poderiam existir, mas deixariam de ter a característica que possuem e funcionariam de outra forma para o jogador.

Okada, lançado originalmente em 2006 utiliza de gráficos similares a uma pintura para se aproximar do jogador

Assim como a pintura e o cinema, que possuem estilos técnicos e artísticos específicos, os jogos também passam por escolhas artísticas visuais extremamente bem pensadas e elaboradas. Afinal, voltamos ao assunto: arte é o desejo de evocar sentimentos e emoções.

A direção de arte nos jogos é justamente para definir esses pontos cruciais dentro de um jogo. A paleta de cores não é escolhida por acaso. As cores chapadas e menos saturadas de Shadow of the Colossus servem ao propósito do jogo, assim como as cores mais vivas e vibrantes de um jogo da franquia Street Fighter. Ou ainda, os elementos visuais, como em Super Mario Bros. 3, que foi pensado unicamente para transmitir que o jogo se passava em uma peça de teatro.

Narrativa e storytelling: Quando os jogos contam histórias inesquecíveis

A narrativa muitas vezes é o ponto de maior relevância para definir o quão bom um jogo é ou não. Gráficos ruins (ou mal escolhidos), a qualidade sonora e até a qualidade de gameplay acabam sendo colocados de lado, quando a história a ser contada é muito mais relevante do que esses aspectos. É claro, quando ela se alia a esses pilares, o que temos geralmente são algumas obras primas em forma de jogo.

The Last of Us e Red Dead Redemption 2 são exemplos de como histórias emocionantes podem ser contadas através do meio interativo. E nesse ponto, elogia-se tanto a narrativa desses jogos, pois ela justamente se alia aos outros aspectos do jogo. O visual deslumbrante, a trilha e efeitos sonoras fenomenais e é claro, uma interação muito bem proporcionada com a gameplay. Seria possível contar as mesmas histórias, mantendo o storytelling impecável, mas não teríamos obras-primas caso os outros aspectos não estivessem alinhados.

Como já dito, a interação com os outros aspectos do que é arte, é o que faz os jogos serem considerados arte. E nesse ponto, os “jogos de escolha e consequência” surgiram de forma magistral. Jogos como Life is Strange, The Walking Dead (Telltale Series) e Until Dawn, surgiram quase como filmes interativos, tendo como foco extremo a narrativa e o storytelling e as escolhas do jogador, que são fundamentais para a história.

Esse é um caso curioso, pois muito se diz que esses jogos são quase como filmes interativos, uma vez que a gameplay é mais simples e com menos combinações de movimentos, dando prioridade a importância de cada ação. E o curioso, é justamente que esses jogos que se utilizam de um formato cinemático, inspiraram filmes a fazerem o mesmo. Já uma porção de filmes que são guiados pelo espectador, que podem escolher as ações que querem para direcionar a obra.

Música e som: A trilha sonora como elemento artístico

A música, seja em qualquer contexto, é capaz de evocar emoções, sentimentos e pensamentos de maneira única. O som possui a capacidade de alterar completamente a atmosfera de algo e, a escolha assertiva desse aspecto diz muito sobre o que aquela obra quer passar. Sejam músicas mais melancólicas para momentos tristes, ou ainda, algum rock pesado em cenas de ação. As escolha, mais uma vez, não é a toa. A música consegue transmitir a uma mesma cena inúmeras emoções, apenas dependendo de seu tom. E claro, para os jogos não seria diferente.

Não é a toa que as trilhas sonoras nos games alternam entre momentos de pico e de maior calmaria. Isso é proposital para fazer o jogador sentir algo. Compositores como Nobuo Uematsu (Final Fantasy), Koji Kondo (The Legend of Zelda) e Gustavo Santaolalla (The Last of Us) criaram trilhas sonoras que transcendem o jogo e se tornam peças artísticas por si mesmas e somente elas por si só conseguem canalizar aquela emoção.

Sejam as trilhas sonoras da era 8 bits, ou até as trilhas orquestradas, cada uma delas é pensada para momentos específicos do jogo. A música “épica” acionada numa batalha contra algum boss, ou ainda aquela trilha mais quieta, no momento certo pode te fazer sentir um frio na espinha.

A trilha de Journey, composta por Austin Wintory, foi a primeira a ser indicada ao Grammy, evidenciando o impacto cultural e artístico que a música dos videogames pode ter. E é claro, a questão do “som” engloba todo e qualquer efeito sonoro do jogo, seja o barulho das passadas do personagem, ou o vento sibilando, explosões ao fundo ou até o som de um motor. A utilização do áudio é algo dinâmico e é responsável por emergir o jogador completamente no que a parte visual está proporcionando.

Quando um jogo se torna arte?

Depois de tudo isso… Quando um jogo pode finalmente ser considerado arte e não mais um mero produto de entretenimento? Além da mera jogabilidade, um jogo que seja capaz de oferecer uma experiência que provoque emoções, estimule reflexões ou traga inovações estéticas, poderia ser considerado arte.

Isso não significa que todos os jogos precisam ser altamente filosóficos ou emocionalmente profundos para serem considerados artísticos. Nem todos os jogos devem carregar consigo alguma carga cultural ou reflexiva capaz de mudar uma pessoa que passa por essa experiência, mas sim, devem demonstrar um nível de intenção criativa que ultrapassa a simples diversão.

O reconhecimento dos videogames como arte já aconteceu em diversas frentes. O MoMA (Museu de Arte Moderna de Nova York) já incluiu videogames em sua coleção permanente, e festivais de cinema e arte têm cada vez mais incorporado os jogos em suas programações, reconhecendo o valor dos games enquanto obra.

Os videogames são uma forma legítima de arte, pois combinam narrativa, estética, música, interatividade e emoção de maneiras únicas. Eles transcendem o entretenimento para se tornarem experiências culturais e filosóficas únicas, incapazes de serem reproduzidas em totalidade pela pintura, teatro, cinema ou qualquer outra arte, pois, ao tentar transpor para outra forma artística, ela já deixaria de ter as suas próprias características, que tornaram aquele jogo, de fato, arte.

Jornalista, marketeiro, pro-wrestler e aventureiro urbano. Completamente apaixonado por escrever, uma paixão que só se compara ao gosto por games e cultura nerd como todo. Sempre em busca de novas experiências e formas criativas de se expressar, mergulhando em tudo o que me fascina e me move.

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