Tenho plena convicção de que se não fosse pela necessidade de falar, eu provavelmente teria aprendido a andar de bicicleta primeiro. Bicicletas fizeram parte da minha vida pela necessidade, eu morei em uma ilha e não havia automóveis. Era aprender a subir em uma bicicleta ou gostar de andar muito. Mas, como toda criança, eu tinha um problema com ladeiras. Não subi-las, mas descê-las. Não sabia a hora de frear e me estabacava. Deve ser por isso que eu me identifico tanto com o personagem que controlo em Lonely Mountains: Downhill (Steam / PlayStation 4 / Xbox One).
Essa identificação já começou na primeira das quatro montanhas — Gratehorn — denominada pela Megagon Industries como meio que um “tutorial rápido dos controles”. “Aperte o botão A para acelerar”. Apertei por mais tempo do que devia e dei de cara em uma pedra. Essa sim é uma sensação que eu conheço bem.
Mas as minhas horas com o projeto da Megagon Industries não foram só lembranças do passado, mas ter conhecimento de que algo faltava em muitos jogos do “estilo” ciclismo (Descenders, Trials) e que Lonely Mountains foi um dos poucos a resolver esse quebra-cabeça. Faltava estilo e acima de tudo, um foco na habilidade sem dar margem para superficialidade.
No começo de 2019 eu joguei um parente distante de Lonely Mountains, Trials Rising. Apesar dos veículos de duas rodas, as ideias da Red Lynx e dos alemães da Megagon são tanto diferentes quanto similares. Para as duas o importante é dar ferramentas para o jogador ou criar cenários complexos para que ele se especialize nas mecânicas. No entanto, para a Red Lynx, o importante é que ele aprenda o progresso da fase – uso de medalhas de bronze, prata, e ouro para demonstrar avanço nas técnicas, desafios adicionais, etc. Para a Megagon cada trilha da montanha é um “tudo ou nada”. Complete-a no tempo determinado ou você não vence o desafio.
Esse é um design que digo ser até intimo dele, pois uma das minhas maiores falhas é viver dentro desses absolutos – se o projeto no qual eu trabalho não está do meu gosto, eu o abandono.
A ciência desse meu defeito faz florescer outro, o da teimosia. Manhã após manhã eu tentava completar as duas primeiras trilhas no menor tempo possível. Descobria atalhos, quebrava as supostas regras que havia imposto, tentava ver o quanto de impacto a bicicleta aguentava antes de desmontar nas minhas mãos ou o meu personagem ser jogado dela.
Um dos poucos desbloqueáveis de Lonely Mountains são peças de bicicleta; junte cinco e você irá obter uma nova bicicleta. Algumas são mais rápidas, outras absorvem quedas de alturas maiores e por aí vai. São bicicletas feitas para incentivar a completação dos objetivos, além de instigar você a voltar às trilhas anteriores. Uma singela forma do jogo me falar “tudo bem você não conseguir isso agora, vá em frente e tente depois com uma nova bicicleta ou com mais experiência”.
Cabeça dura do jeito que eu sou, demorei quase seis horas para perceber que o único aprendizado que eu ia tirar se continuasse nas duas montanhas iniciais seria frustração e mais calos nos meus dedos. Decidi, muito incomodado, seguir em frente, e foi então que Lonely Mountains mostrou todo o seu brilhantismo.
O exercício em frustração virou um exercício de aprendizado. Ao tratar por meio de absolutos e com alguém que é teimoso como eu, Lonely Mountains me ensinou que se eu não apreciasse os detalhes para descobrir os atalhos, perderia momentos interessantes.
Foi assim, por exemplo, na terceira montanha, Sierra Riviera, cujas trilhas são traiçoeiras e o terreno árido é um imenso contraste com o frescor de Gratehorn ou o clima de outono de Redmoor Peaks. O que tinha tudo para ser um dos mapas mais desinteressantes, já que eu especialmente não sou fã de climas desérticos ou áridos, é recheado de toques que o tornam ainda mais especial. Venham esses toques dos diferentes tipos de cactos até pequenas suculentas no final da trilha. São coisas que teriam passado despercebido se eu ainda estivesse com a mentalidade de “eu tenho que completar esse objetivo e nada mais importa”.
Ele eleva o conceito de ciclismo misturado com montanhismo para algo além de um conjunto de elementos que ficam na tela e a frequente lembrança – como em jogos como o já citado Descenders – que você precisa fazer X ou Y pontuações. Ele prioriza o cenário, a sensação de velocidade e a precisão dos controles para criar momentos de êxtase, pavor e tensão.
Em conjunto com a ênfase no cenário, a desenvolvedora não usa uma trilha sonora nem mesmo uma musica de vitória. Tudo o que você ouve é o barulho do vento a medida em que a sua bicicleta ganha velocidade, os sons da grama sendo amassada pelas suas rodas, pássaros e o barulho das árvores. Isto é, quando você não acerta uma delas – aí vem um barulho oco. Tão oco quanto a cabeça do personagem, eu presumo.
E mesmo se você tiver essa mentalidade teimosa e quiser continuar com ela — afinal quem sou além de um mero saudosista dos meus tempos de infância que gosta um pouco demais de bicicletas, apesar de não ter usado uma em muitos anos —, você ainda vai ter um dos mais soberbos jogos de ciclismo e montanhismo que já vi em recente memória.
Lonely Mountains: Downhill não é só aquele jogo de ciclismo que fez as minhas manhãs mais agradáveis, é um que exala charme e tenta te agradar de todas as maneiras possíveis. Ele pode ser impiedoso nas montanhas, nas curvas e nas demandas pelo perfeccionismo. Eu bati o pé, eu resmunguei, eu vi meu número na tabela de liderança progressivamente descer quanto mais pessoas descobriam rotas mais eficazes. Voltava para a trilha ou montanha e tentava reconquistar o meu lugar. E isso pode ser muitas vezes um processo frustrante até demais para o meu gosto.
Mas debaixo de qualquer pingo de frustração, a Megagon Industries fez o que tanto eu esperava de um jogo de ciclismo: ter a sensação de liberdade que a natureza te dá. Você vai bater, você vai se estabacar, você vai querer xingar mil vezes aquela pedra maldita que estava no caminho. Mas no fundo, não passa de um processo de aprendizado. Afinal, o que não é um aprendizado nessa vida? Vai lá, pegue a sua bicicleta e aproveite a vista.
A conclusão sobre Lonely Mountains: Downhill
Um fantástico jogo sobre ciclismo e montanhismo que é capaz de ser dificílimo — às vezes até demais — e charmoso. Jogue-o pela batalha na tabela de lideranças, para completar desafios, ou para aproveitar a sensação de liberdade que é estar perto da natureza.
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(Por Lucas Moura, editor do HU3BR)
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