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NÓS: unimilhões em organismo de servidão

NÓS é uma das primeiras distopias publicadas no mundo desse gênero literário. O livro foi escrito pelo russo Ievguêni Zamiátin, por volta de 1921, e inspirou grandes obras como “1984”, de George Orwell, e “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley. Infelizmente, o romance não se tornou tão popular quanto os títulos que o sucederam.

Zamiátin era engenheiro e encontrou na escrita sua maior paixão. Por conta de sua comédia satírica, foi preso e exilado diversas vezes. Inclusive, a publicação de Nós foi proibida na Rússia, por ser considerada como “ideologicamente indesejável”, embora não fosse uma crítica direta à sua nação. O escritor pediu exílio à Stálin, e publicou o romance em solo americano, em 1924.

A história é ambientada em um futuro próximo, logo após uma revolução histórica que eles chamam de “guerra dos 200 anos”, onde a sociedade foi organizada com base na racionalidade, e a população possui horas determinadas para acordar, dormir, trabalhar, ter relações sexuais e horários de descanso – que são definidos pela Tábua das Horas.

Os habitantes de “Utopia” perderam sua identidade, e não são mais identificados por nomes, mas sim por números e letras, ou “unifis” (uniformes). Foram privados do pensamento livre, da imaginação e vivem organizados sistematicamente: realizam as mesmas tarefas aos mesmos horários, caminham e se vestem igual os demais. E moram em casas de vidros – pois um cidadão de bem não tem nada a esconder –  e são vigiados pela polícia política, chamada de “Guardiões”.

Em um regime totalitário, chamado de Estado Único, a sociedade serve ao Benfeitor, regente supremo da nação, que induz uma sensação de superioridade à população, por não serem mais regidos pelas emoções e fazerem parte de uma sociedade disciplinada. Porque uma sociedade onde o livre arbítrio é concedido e a imaginação reina, é julgada como inferior e selvagem.

O princípio do Estado Único é que a liberdade e felicidade não combinam. É preciso ser ordenado para ser feliz. Aliás, quem tem tempo para se atentar à esses assuntos quando se tem tantas ordens a serem cumpridas?

Os cidadãos parecem ter saído de fábrica, e é mencionado a sistematização do ser humano através do Taylorismo, a invenção de Frederick Winslow Taylor, que foi base fundamental para a organização de Utopia.

Dessa maneira, o título se refere a milhões de pessoas de comportamento e objetivos tão homogêneos, que formaram um único organismo.

“Caminhávamos como um corpo de milhões de cabeças, e em cada um de nós havia a mesma alegria resignada que, provavelmente, experimentam as moléculas, os átomos e os fagócitos.”

O enredo se concentra em torno do personagem D-503, um engenheiro talentoso que trabalha na construção de um foguete que fará viagens em busca de vidas extraterrestres. Na esperança de encontra-las, o protagonista escreve um livro para que os possíveis extraterrestres saibam um pouco sobre o modelo perfeito de uma sociedade.

Portanto, o livro que temos em mãos é o diário de D-503, no qual cada capítulo é um dia de anotações, onde ele dialoga com o possível leitor que irá encontra-lo. No caso, nós.

Em uma narrativa satírica e poética, o personagem conta sobre o que formou a civilização de Utopia, e descreve suas descobertas e visões pessoais. D-503 inicia a história descrevendo seu orgulho em seguir as ordens impostas pelo governo e adora sua servidão.

Até que ele conhece I-330 e se apaixona – cometendo seu primeiro crime. Durante o diálogo com o leitor, presenciamos a transição entre a dúvida, o estado de negação e as euforias do protagonista em experimentar emoções e impulsos. Aos poucos, ele se vê contaminado por uma doença horrível, chamada “imaginação”, e descobre algo novo, chamado “alma”.

I-330 é membro de um movimento de resistência clandestino que deseja conduzir uma revolução, e o contamina pela rebelião de um espírito que deseja a liberdade.

Tudo caminha para um final nunca imaginado.

Ao invés de abordar a manipulação midiática ou repressão pela violência, Zamiátin retrata um poder que se dá através da perda da individualidade, na alienação do ser sobre si mesmo, na privação do pensamento crítico sobre tudo que o cerca.

Isso faz de NÓS uma obra tão atual quanto necessária.

A mão invisível do poder

Enquanto mergulhamos na narrativa do cotidiano de D-503, nos sentimos assombrados por uma atmosfera de constante tensão, e também é possível sentir a presença invisível de um poder que controla a todos.

A civilização de Utopia não necessitou da truculência para ser organizada sistematicamente. O poder regido pelo Benfeitor não é apenas algo que impede, mas sim o que impele. Pois são os próprios cidadãos que se autovigiam.

É claro que a força repressiva está ali, mas ela trabalha no estado mental do indivíduo.

Podemos relacionar essa dominação com a nossa própria realidade.

Michel Foucault, importante filósofo francês, descreve o poder como uma prática social, e como tal, constituido históricamente. Para ele, antes o poder se concentrava em alguns espaços, hoje está por toda parte.

O Estado não é mais o orgão central que o detém, pois este se deslocou do centro para as extremidades, algo que Foucault chama de “micropoderes”: família, religião, hospitais, polícia, mídia, etc.

Ainda segundo o filósofo, o poder não é algo que se encontra em um ponto específico da estrutura social; o indivíduo é o seu produtor.

Em nossa sociedade atual, ele se dissemina através de técnicas de controle cada vez mais tecnológicos: propaganda, mídia, Internet, etc.

Ou seja, nossa sociedade se autocontrola, e os jogos de poder são determinados pelo mercado – o grande gestor.

A servidão como zona de conforto

“Tudo na sociedade humana se aperfeiçoa infinitamente, e assim deve ser. Que instrumento horrendo era o antigo chicote, e agora como é belo…”

Ao longo da leitura podemos nos indignar de como cidadãos servem ao Benfeitor voluntariamente. Mas essa pirâmide de subordinação também não está longe da nossa realidade.

Um tirano sempre terá sob seu comando um grupo de pessoas, que por sua vez, também terão seus respectivos subordinados, e assim por diante.

Segundo o autor, esse ciclo forma relações de favorecimento e obediência em diversos níveis e esferas, pois controlam a grande parcela ignorante pela força e principalmente pelas manipulações de “pão e circo”.

Os subordinados são escravizados uns através de outros, e o tirano se mantém em sua posição porque seus súditos são servis.

A própria massa se escraviza quando, ao se deparar com opções entre liberdade ou submissão, escolhe renunciar à própria “alforria” e aceita sua subordinação. Se acostuma com o servilismo, e até o procura.

Paradoxalmente, a servidão é voluntária.

E o que isso tem a ver com nossa atualidade?

Oras, essa dinâmica sempre foi o sustentáculo da nossa civilização.

“Todas as manhãs, com exatamente seis rodas, precisamente, na mesma hora, precisamente no mesmo minuto, nós, os milhões, levantamos como um só. Exatamente na mesma hora, unimilhões começamos a trabalhar e, na mesma hora, unimilhões terminamos o trabalho. E fundidos num único corpo com milhões de mãos, exatamente na mesma hora determinada pela Tábua, no mesmo segundo, levamos a colher à boca e, no mesmo segundo, saímos para passear, vamos no auditório, ao ginásio de exercícios de Taylor, adormecemos…
Serei totalmente sincero: ainda não encontramos uma solução absolutamente exata para a felicidade — duas vezes por dia, das 16 às 17 horas e das 21 às 22, nosso poderoso e único organismo se divide em células isoladas: essas são as Horas Pessoais estabelecidas pela Tábua das Horas.”

Em NÓS, Zamiátin representa a rebelião do espírito humano primitivo contra a mecanização e racionalização do mundo. Um romance escrito na década de 20, mas que faz com maestria o papel das distopias: afastar as cortinas que encobrem a realidade, independente da época.

Ao pintar as diversas caras da tirania e estratégias de poder, Zamiátin nos faz repensar em até que ponto desfrutamos da liberdade, ou estamos dispostos a abrir mão da autonomia em troca dos confortos da servidão.

Se ainda não somos livres, o espírito humano há de se rebelar em algum momento.


Autor: Ievguêni Zamiátin

Editora: Aleph

Páginas: 344

Preço: 62,90

Tradutor: Gabriela Soares

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