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O Colecionador: HQ aborda o colecionismo com sensibilidade e reflexão

O Colecionador (Editora Hipotética e Dom Mordaz, 2025), publicado agora em agosto, acompanha a vida de Erico, um dono de sebo na cidade de Porto Alegre, que passa a refletir sobre o peso, o valor, e o impacto que sua coleção tem em sua vida. Erico é também um colecionador de quadrinhos e passa a refletir sobre a sua existência a partir da ótica do colecionismo.  E no meio do caminho, a descoberta de um desafio pessoal fará com que Erico faça reflexões sobre o colecionismo que vão afetar e direcionar sua vida daqui para frente.

Análise dos elementos que constituem a obra

O roteiro é preciso ao dar o ritmo necessário ao alternar entre momentos de maior tensão ou de maior reflexão. Não posso deixar de salientar que o roteirista além de fazer referência direta a várias obras dos quadrinhos, também tem uma “cena” onde Erico, o personagem principal, “julga” os seus clientes de forma muito similar ao filme Alta-Fidelidade (2000). Não sei se foi intencional ou não, mas achei genial.

A ilustração reflete em seus traços a intensidade narrativa. Alterna entre quadros com o foco necessário entre os personagens, habilmente transmitindo emoção, principalmente quando se trata do personagem principal, Erico, com quadros relatando a paisagem da cidade de Porto Alegre. Porto Alegre retratado sob uma ótica bastante “pé no chão”.  

A colorização é sensata ao acompanhar o tom da narrativa, servindo com reforço das tensões sentidas pelos personagens, e eventualmente fazendo um pouco de contraponto, trazendo um pouco de alívio para o leitor.

Coleção, colecionar, colecionismo

Coleção: Conjunto de coisas da mesma natureza, reunidas para fins de estudo, comparação ou exposição, ou apenas pelo desejo e prazer de colecioná-las. Conjunto de objetos, geralmente conservados em grupo, que têm alguma relação entre si.

Colecionar: Fazer coleção de; reunir um conjunto de coisas por gosto ou passatempo; coligir, compilar, juntar, reunir.

Colecionismo: Tendência a fazer coleções. Atividade de quem faz coleção de algo.

Meu relato pessoal sobre o livro e sobre o meu colecionismo

Alguns dias atrás fui na Loja da Brasa para a Oficina de (Re)alfabetização visual. Nada mais natural que ao acabar a oficina eu fosse dar uma olhada nas HQs/graphic novels (não vou entrar no mérito da nomenclatura aqui). Apesar da enorme variedade de capas, estilos artísticos, cores e tamanhos, uma HQ me chamou a atenção de imediato … uma capa bicolor laranja e azul com um nome simples e direto: O Colecionador. Na contracapa, as palavras de Érico Assis cimentaram a minha “necessidade” de levar essa HQ:

“Se você já colecionou alguma coisa, você e o Érico vão se perguntar, juntos, o que é colecionar, por que colecionar e onde que esse colecionismo vai parar. Porque, desculpe o aviso: um dia, essa coleção vai existir e você não.

Mas não é só terror existencial. O colecionador também é o retrato ácido e engraçado de uma época do colecionismo de quadrinhos no Brasil. A era dos gibitubers, dos lacradores e dos denunciadores de lacração, dos lombadeiros, dos bookplates e do fitilho.

O quadrinho na sua mão é um registro dessa era, aqui por meados dos anos 2020. Leia este quadrinho em 2050 e você vai rir, chorar ou sentir saudade. Ou vai ter que pedir para o sábio da aldeia pós-cataclismo explicar como era aquele mundo.”

Érico Assis, na contracapa de O Colecionador.

E essa minha “necessidade” que me fez levar para casa O Colecionador está justamente ligada ao meu colecionismo. Eu tenho uma tendência a colecionar coisas: HQs, livros, revistas de videogames, videogames, cartas de Magic The Gathering, etc. E, no fim das contas essas coleções são muito mais do que acumulações ou junções de coisas, são elos materiais com memórias afetivas importantes na história de um indivíduo. No meu caso, essas memórias estão grandemente associadas com meu pai, meu “paitrocinador” no consumo das artes.

Homo coletor

O Homo sapiens, antes do surgimento da agricultura, tinha o hábito de vida caçador-coletor. Coletar é parte importante da história evolutiva humana. De coletar para colecionar, ou seja, manter os objetos de coleta que transcendam o apelo funcional, foi um passo natural.

Fósseis marinhos colecionados por Neandertais

Um estudo publicado no ano passado mostrou que Neandertais também colecionavam. Foram encontrados 15 fósseis marinhos de diversas famílias de moluscos. Esses fósseis foram transportados para essa caverna entre 40.000 e 55.000 anos atrás, e cuidadosamente armazenados. “Os achados mostram que o desejo de colecionar – seja para expressar curiosidade, criatividade ou senso estético – é uma característica profundamente enraizada na evolução humana”.

Museus, bibliotecas e outras lugares de coleções

O ser humano é capaz de colecionar praticamente qualquer coisa. Mas um dos propósitos principais de uma coleção é a preservação da memória através da materialidade. Museus e bibliotecas são as principais instituições das civilizações que guardam coleções de importância histórica para a humanidade. 

“Pode-se dizimar uma geração de pessoas e queimar suas casas e terras. Ainda assim elas voltarão. Mas se forem destruídas suas realizações e história, será como se nunca tivessem existido. Serão apenas cinzas flutuando.”  – Citação do personagem interpretado (e dirigido) por George Clooney no filme Caçadores de Obras-Primas (2014).

A finalidade principal de um museu é de “adquirir, conservar, pesquisar e exigir patrimônio humano tangível e intangível”. O museu de Enigaldi-Nana é o mais antigo museu conhecido no mundo. Data de cerca de 530 AEC (Antes da Era Comum), mas não existe mais. Os Museus Capitolinos, fundados em 1471 na Itália, constituem o mais antigo museu do mundo ainda em pleno funcionamento.

Reflexões finais

Mas apesar da importância para a humanidade que têm os museus (e também bibliotecas e outras instituições similares), coleções pessoais/particulares devem ser vistas sob outra ótica. Por mais metódico que seja o colecionador, invariavelmente a emoção vai estar subjacente a quaisquer que sejam os outros motivos que o colecionador alegue para seu colecionismo.

A emoção envolvida em cada coleção é abordada em O Colecionador ao utilizar distintos personagens. E para além disso, a mudança de significação que uma coleção pode ter para um indivíduo ao longo de sua vida é carregada ao longo da trama através do personagem principal e suas reflexões.

Os autores tratam com sensibilidade do tema. As reflexões que apresenta em O Colecionador tem momentos de abordagem cínica com o que é o hábito de colecionar para diversos tipos de públicos, para depois se aprofundar com uma ótica mais sensível, fazendo uso do personagem principal, Érico, e uma jornada que, pra além do amadurecimento, vai a um ponto quase transcendental ao entrelaçar colecionismo e existencialismo. Ao final de contas, nossas vidas são formadas por uma coleção de eventos.

Dado que o tema pede uma abordagem mais subjetiva do que objetiva (a abordagem objetiva pode ser vista nos dois parágrafos acima), volto aqui a incluir o meu envolvimento pessoal com o colecionismo. Posso falar que o colecionismo está intimamente ligado a uma visão de mundo que busca incessantemente por encontrar padrões em meio ao caos (a catalogação encontra-se quase sempre associada ao colecionismo). O Homo sapiens tem uma aptidão moldada evolutivamente para identificar padrões na natureza. Alguns buscam profissões que levem isso um passo adiante, como eu que me tornei biólogo.

Ao ler O Colecionador, me vi refletindo tanto sobre a “jornada” envolvida em uma coleção, sobre talvez uma das principais angústias: o que vai acontecer com as minhas coleções depois que eu não existir mais. E isso foi fortemente trabalhado na obra.

A partir do ponto que uma coleção pode assumir diversos simbolismos, pode se tornar a extensão de um indivíduo, pode se tornar o registro de seu conhecimento, de sua personalidade, do seu ser… o que fazer com uma coleção depois que seu dono deixa de existir.

Sabendo que uma coleção pode vir a ter uma existência “virtualmente infinita”, o colecionador, um ser que já nasce com uma contagem regressiva marcando o fim de seus dias, precisa ter um pouco de humildade ao cuidar com tanto afinco de artefatos que suplantarão sua própria existência.

Essas são algumas das reflexões que a obra O Colecionador causou em mim. As lágrimas que surgiram ao terminar a última página refletem uma HQ feita com emoção e sensibilidade.

Outras obras dos autores de O Colecionador

Djeison Hoerlle, roteirista: Jardim das Ideias (2021), Perda (2021), O Epitáfio de Bartolomeu (2023), Café Delgado e outros etarismos (2024), Dissabores (2024), O Vigilante do Centro Histórico (2024).

Dieferson Trindade, ilustrador: Cornos (2016), Joãos & Joanas – Por Beltranos e Beltranas (2017), O Mundo de Oz (2017), Afronta (2018), Aérea (2019), Nossos Olhos (2019), Segunda Feira eu paro (2019), Buracos (2020), Os Dias Ruins Acabaram (2021), Dobras (2022), Mudança (2022), Rodoviária (2022), Os Pássaros (2023), Bilica: Origem (2024), Revelação (2024).

Juliano Dalbem, colorista: O Colecionador (2025) é sua obra de estreia.

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Biólogo/geneticista pesquisador na área de evolução humana, genética de populações humanas, coevolução gene-cultura. Nos últimos anos passou a pesquisar também videogames e sua interação com a ciência. Atualmente é Pós-Doutorando no PPG Patologia da UFCSPA. É pesquisador colaborador no Game_Pesq, grupo de pesquisa sobre jogos eletrônicos, cultura e sociedade. Atua como consultor científico no Science Game Center e no Molecular Jig Games.

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