Em uma entrevista para a “Wired Magazine”, o historiador e escritor Yuval Harari alertou para o perigo da humanidade em pouco tempo se tornar irrelevante e redundante diante dos avanços da Inteligência Artificial. Dessa vez, não mais através das distopias como a do computador HAL 9000 que tenta matar a tripulação de uma nave no filme “2001” ou por replicantes que perseguem um policial no filme “Blade Runner”. Mas agora por meio dos aplicativos e algoritmos que “compreendem melhor nossos desejos e sentimentos do que nós mesmos”. Porém, o discurso de Harari atira no que vê e acerta no que não vê – só podemos achar que os algoritmos são realmente inteligentes se o próprio homem rebaixar ou tornar mais flexível o conceito de “inteligência”. A fala de Harari faz parte de uma nova narrativa publicitária das corporações tecnológicas: projetar para o futuro distopias que sempre fascinaram a humanidade por toda a História: ver a si própria substituída por duplos tecnológicos como reflexos em espelhos, fotografias, frankensteins, golens, robôs, replicantes e, agora, aplicativos.

Os anos 1990 foi a década da popularização da Internet, de livros didáticos como A Vida Digital do cientista Nicholas Negroponte que tentava esclarecer para os mortais como a passagem do átomo para o bit revolucionaria a cultura e a economia, e do messianismo empresarial de Bill Gates com o livro A Estrada do Futuro prevendo revoluções na educação e nos negócios com as redes multimídia.

Mas também foram anos das distopias que viam com desconfiança essa hegemonia digital: cyberpunks e tecnocríticos herdeiros das visões do livro Neuromancer de William Gibson nos anos 1980, cujo auge foi a trilogia Matrix – um pesadelo gnóstico na qual as máquinas transformaram a realidade em um deserto e os homens prisioneiros em uma realidade virtual, enquanto seus corpos têm a energia drenada pelas máquinas para manter a Matrix.

Utopia e messianismo, até aqui, sempre foi a narrativa pela qual as corporações como Microsoft, Apple ou Oracle vendiam o futuro para os usuários. Mas as coisas estão mudando: no lugar está surgindo uma estranha distopia (um estilo apropriado dos tecno-críticos do passado) na qual autoabdicação humana  e messianismo religioso se misturam. O que resulta numa espécie de tecno realismo amargo sobre um futuro inevitável onde nos tornamos dependentes da tecnologia.

E por que? Porque os algoritmos se tornaram mais inteligentes do que nós. O homem deixou de ser o “mais sofisticado sistema de processamento de dados do Universo”, substituído por “algoritmos externos” em máquinas e aplicativos.

Essa é a visão de Yuval Harari em seu livro Homo Deus: A Brief History of Tomorrow (“Homo Deus: Uma Breve História do Amanhã”) – para Harari, o homem estaria prestes a se tornar irrelevante. Mas o mundo melhorará. E por que? Porque o fator humano será eliminando com a Inteligência Artificial – carros automáticos e médicos de IA, por exemplo.

A entrevista abaixo foi concedida por Yuval Harari à Wired Magazine. Nas palavras de Harari podemos facilmente encontrar os elementos da nova religião promocional atual: a da autoabdicação humana (o rebaixamento da noção de inteligência, permitindo-nos humanizar máquinas e aplicativos), um dos aspectos do tecnognosticismo contemporâneo. Dessa vez, por trás da cultura dos aplicativos, redes sociais e smartphones.

Vamos à entrevista e depois esse humilde blogueiro irá tecer alguns breves comentários.

Yuval Harari

A Humanidade está próxima de se tornar irrelevante

Olivia Solon (Wired Magazine, 21/02/2017)

WIRED: Em seu livro, você prediz o surgimento de duas religiões completamente novas. Quais são elas?

HARARI: Tecno-humanismo almeja amplificar o poder dos humanos, criando ciborgues e conectando os humanos aos computadores, mas isto ainda vê os interesses e desejos humanos como sendo a mais alta autoridade no Universo.

Dataismo é um novo sistema ético que diz, sim, humanos eram especiais e importantes, porque até agora eles eram os sistemas de processamento de dados mais sofisticados do Universo, mas este não é mais o caso. O ponto da virada é quando você tem um algoritmo externo que compreende você – seus sentimentos, emoções, escolhas, desejos – melhor do que você mesmo os entende. Esse é o ponto quando há uma mudança que torna os humanos redundantes.

WIRED: Como assim?

HARARI: Tome por exemplo o Google Maps ou o Waze.  Por um lado eles amplificam a habilidade humana – você é capaz de alcançar seu destino mais rapidamente e com mais facilidade. Mas ao mesmo tempo, você está mudando a autoridade para o algoritmo, e perdendo sua habilidade de encontrar seu próprio caminho.

WIRED: O que isto significa para o Homo sapiens?

HARARI: Tornamo-nos menos importantes, talvez irrelevantes. Na era humanista, o valor de uma experiência veio de dentro de você mesmo. Na era Dataista, o significado é gerado pelo sistema externo de processamento de dados. Você vai a um restaurante japonês e pede um prato maravilhoso, e a coisa a ser feita é tirar uma foto com seu celular, colocá-la no Facebook, e ver quantas curtidas consegue.  Se você não compartilha suas experiências, elas não se tornam parte do sistema de processamento de dados, e elas não têm significado.

WIRED: A mudança para o Dataismo importa para a política?

HARARI: No Século XX, a politica era o campo de batalha entre as grandes visões sobre o futuro da humanidade.  As visões eram baseadas na Revolução Industrial e a grande questão era o que fazer com novas tecnologias como a eletricidade, os trens e o rádio. Seja lá o que for que você diz sobre personagens como Lenin e Hitler, você não pode acusá-los de falta de visão. Hoje, ninguém na política tem qualquer tipo de visão; a tecnologia está se movendo rápida demais e o sistema político é incapaz de fazer sentido disso.

WIRED: Quem pode fazer sentido disso?

HARARI: O único lugar que você escuta visões amplas sobre o futuro da humanidade é no Vale do Silício, de Elon Musk, Mark Zuckerberg. Pouquíssimas pessoas têm visões competitivas. O sistema política não está fazendo seu trabalho.

WIRED: Então, as empresa tecnológicas se tornam os novos imperadores, até mesmo deuses?

HARARI: Quando você fala sobre Deus e religião, no final é uma questão de autoridade. Qual é a mais alta fonte de autoridade que você procura quando tem um problema na sua vida?  Mil anos atrás você procuraria a igreja. Hoje, esperamos que os algoritmos nos forneçam a resposta – com quem ter um encontro, onde viver, como lidar com um problema econômico. Assim, mais e mais autoridade está indo para estas corporações.

 

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