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O peso da realidade em Boa noite Punpun

O que torna um adulto quem ele é passa pelas experiências vividas na infância e na adolescência. Esse processo de formação é objeto de estudo da ciência e também é ponto focal nas artes. O espectro de abordagens vai desde obras que “douram a pílula” e/ou enxergam através de lentes cor-de-rosa até obras que expõe a realidade em todo o seu peso. Boa noite Punpun se encontra nesta ponta do espectro.

Um belo desenho fotorrealista de página inteira, já na primeira página, dá um bom indício do caminho que será seguido. Boa noite Punpun é intenso. As páginas “voam”! O mangá é tão intenso que não dá vontade de parar de ler. Inio Asano leva o leitor através da vida de Punpun, desde a infância/pré-adolescência até os anos iniciais da vida adulta. Nesse processo, Asano leva o leitor a ver os personagens inicialmente de uma certa forma, para então mais adiante mostrar que o provável julgamento que o leitor fez de determinado personagem se mostra equivocado com novas informações e novas perspectivas sendo mostradas. Mostrando que assim como na vida real, as pessoas tendem a viver muita mais no cinza do que no preto e branco.  

A jornada de desenvolvimento de Punpun passa por depressão, família disfuncional, relacionamentos e autoconhecimento. Isso tudo mostrado de forma realista, inclusive lidando com as escolhas que outros fazem afetam as nossas vidas. Uma jornada intensa que explora crescimento e dilemas humanos de forma crua e realista.

Boa Noite Punpun (Oyasumi Punpun), de Inio Asano, foi originalmente publicado no Japão entre 2007 e 2013 pela Shogakukan. Publicado no Brasil pela Editora JBC em 7 volumes entre 2018 e 2019. Cada volume da JBC engloba 2 volumes do original.

Enredo

Punpun é um garoto normal, que vive “feliz” com sua família. Um dia, Aiko Tanaka é transferida para a sua escola. Foi paixão à primeira vista! Voltando juntos para casa, ela conta que no futuro “a Terra vai ser tornar um planeta inabitável”. É nessa hora que Punpun decide ser cientista espacial. Porém, bem quando encontra seu objetivo na vida, a sua realidade começa a desmoronar.

Esse é o ponto de início de Boa Noite Punpun. A partir daí Punpun irá lidar com muitas mudanças, a reestruturação familiar, o afastamento dos colegas, a depressão do tio… uma sequência de eventos que carregam Punpun por uma angústia existencial.

Personagens

Muitos personagens fazem parte da vida de Punpun ao longo do tempo. E assim como na vida real, alguns permanecem na vida de Punpun por mais tempo, outros menos, alguns chegam, outros se vão.

No começo somos apresentados à família Punyama: Papai Punpun, Mamãe Punpun e Punpun. A descrição dos personagens (além de quais personagens aparecem) vai mudando em cada parte com o passar do tempo. A partir do volume 2 há uma descrição dos personagens antes do começo de cada parte. A própria família Punyama passa a se chamar Onodera: Punpun Onodera, Mamãe Punpun Onodera e Yuuichi Onodera (tio de Punpun). Além deles, os demais personagens podem ser divididos basicamente em 2 grupos: os colegas de Punpun e as relações de Yuuichi.

Cada um desses personagens vai ter paralelamente seu próprio desenvolvimento e evolução de personalidade.

Representação de Punpun (e família)

Punpun é representando graficamente como um “fantasma-pássaro” mudo. Mas todos os personagens o vêem, e interagem como ele, como se ele fosse um humano tal qual os demais. Seu pai, mãe e tio são representados da mesma forma, com o diferencial que falam normalmente.

Mas fica claro, muitos capítulos na frente, que Punpun (e sua família) é de fato um humano, quando Punpun aparece representado graficamente como humano rapidamente. O momento em que o avô de Punpun aparece claramente como humano termina com qualquer dúvida nesse sentido.

A escolha pela representação gráfica de Punpun é então uma escolha deliberada do autor, que ao fazer isso consegue destacar claramente Punpun de seu entorno, bem como possibilita uma ênfase muito maior nas reações emocionais de Punpun e sua família. Como exemplo quando Punpun e Yuuichi são representados como “sombras” quando estão “se sentindo assim”. É possível que essa representação também esteja relacionada a um passarinho que ainda não deixou o ninho.

A escolha do autor pela forma de representar Punpun e sua família vai ainda além quando em alguns momentos há um zoom em algum deles e aparecem as imperfeições do traço, propositalmente.

Emoções

Boa noite Punpun é uma obra muito realista, isso fica claro na forma como o autor trabalha as emoções dos personagens. Já na segunda página do mangá, Punpun aparece e ficamos sabendo que ele estava deprimido com a ideia de ir para a escola. Aqui cabe um “parêntese”: depressão é uma doença, e não apenas um sentimento. Muitas vezes as pessoas tendem a fazer confusão entre tristeza e depressão. Aqui seria necessário confirmar a tradução para ver se de fato o autor quis se referir a depressão ou a tristeza simplesmente.  Mais a frente vemos que ao menos Yuuichi de fato estava sofrendo de depressão e busca tratamento.

Por se tratar de uma obra que aborda o desenvolvimento e amadurecimento de um indivíduo, muitas emoções vão alternando a medida que o próprio Punpun toma conhecimento delas, como o amor, o desejo, o ciúme, e mesmo a tristeza, a desesperança e a apatia.

A falta de sentimento (ou ao menos a falta de amor) fica muito evidente na relação entre Punpun e sua mãe. E acaba ficando evidente por parte do pai com relação ao próprio Punpun também. Asano não poupa o leitor da realidade nua e crua da miríade de possibilidades de sentimentos que surgem diariamente nas vidas de seres humanos. A vergonha que Aiko sente de sua mãe por esta pertencer a um culto. O desprezo que Seki sente pelo pai por este ter se entregado ao alcoolismo.

A leitura de Boa Noite Punpun me fez sentir com intensidade o que os personagens sentiram. Isso se deve tanto a habilidade narrativa (e gráfica) de Inio Asano quanto ao realismo da obra encontrar arcabouço e sintonia em minhas próprias vivências, memórias afetivas e sentimentos.

O que a ciência fala sobre emoções

Mas o que a ciência fala a respeito de emoções e sentimentos?

Homo sapiens e os demais primatas têm a cognição emocional, ou seja, a habilidade de processar, compreender, expressar e gerenciar emoções de forma integrada com o pensamento racional, como um aspecto central de sua evolução biológica. Para os primatas, os padrões e processos da cognição social são a base de grande parte da flexibilidade comportamental e ecológica e da capacidade adaptativa que caracteriza a ordem.

Há uma vasta literatura científica nessa área. Veja aqui um estudo recente mostrando a importância da cognição emocional e social para a evolução hominínea.

Temas abordados

São muitos os temas abordados em Boa Noite Punpun.

Pensamento mágico: Punpun fala com Deus ao pronunciar uma “invocação que seu tio lhe ensinou: “Deus, Deus, Tinkle Hoi.” Deus aparece para Punpun como um homem japonês sorridente nu. As vezes aparece de corpo inteiro, as vezes só a cabeça. Shimizu enxerga e fala com o Deus cocô, que aparece em uma nave alienígena, exatamente da forma em que Shimizu desenha.

Violência doméstica: Já no primeiro capítulo ocorre violência doméstica na casa de Punpun. Seu pai agride a sua mãe (que havia tentado esfaqueá-lo). Ela vai para o hospital. E fica implícito que seu pai vai preso.

Sexo: Dado que Boa Noite Punpun acompanha o desenvolvimento de Punpun desde a infância/pré-adolescência até a fase adulta, o sexo aparece com frequência. Desde a masturbação e o medo de Punpun que seu cérebro tivesse saído naquele momento, até a perda da virgindade. O sexo também aparece como elemento disparador de eventos disruptivos na vida da Mãe Punpun e do tio Yuuichi.

Depressão: A depressão (ou eventualmente tristeza) é quase uma constante na obra como um todo. Em Punpun ela leva ao afastamento dele de amigos/colegas. E em seu tio e sua mãe leva a tentativas de suicídio.

Suicídio: Tanto Mamãe Punpun quanto Yuuichi têm tentativas de suicídio.

Tradução

Nos primeiros volumes Punpun é mencionado como sendo ginasial… ginasial! Em pleno século XXI! A nomenclatura ginasial, colegial, primário, aparece várias vezes ao longo dos primeiros volumes (eventualmente ensino médio é mencionado entre essas… um caos!) é arcaica!

Independentemente da estrutura do ensino japonês, e mesmo em que época se passe, a tradução para o português brasileiro deve buscar equivalência na nomenclatura e estrutura educacional brasileira vigente. A estrutura que continha as etapas ginasial, colegial e primário era dos anos 70!

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) ou Lei nº 9.394/1996 define e regulariza a organização da educação brasileira com base nos princípios presentes na Constituição. Foi citada pela primeira vez na Constituição de 1934. A primeira LDB foi criada em 1961, seguida por uma versão em 1971, que vigorou até a promulgação da mais recente em 1996. A estrutura atual compreende (simplificadamente) Ensino Fundamental, Ensino Médio e Ensino Superior.

Análise dos elementos que constituem a obra

Roteiro: O roteiro é denso, conseguindo trazer profundidade emocional para todos os personagens principais. Além disso, a partir de certo ponto a roteiro começa a fazer uso de flashbacks para explicar o comportamento dos personagens.

Ilustração: Traços dos prédios e ambientes é fotorrealista. Punpun e família são representados como um fantasma-pássaro. Quando dá zoom no Punpun ou família, aparecem as imperfeições do traço, propositalmente.

Autor

Inio Asano nasceu em Ishioka, no Japão, em 1980. Começou fazendo ilustrações em estilo 4-koma na escola, e tornou-se assistente de Shin Takahashi (autor de Saikano) em 2000. Estreou como mangaká em 2002, com o lançamento de Subarashii Sekai (What a Wonderful World).

Suas obras são conhecidas por serem realistas e abordarem o universo a mentalidade dos jovens, variando de slice of life para o terror psicológico.

Colaboradores em Boa Noite Punpun

Assistentes de fundo: Yuki Toribuchi, Satsuki Sato.

Assistente de CG: Hisashi Saito.

Colaboração: Kumatsuto, Yasumasa Iwama.

Prêmios

Prêmio GX para jovens autores da antologia Sunday GX (Shōgakukan), destinada à jovens adultos (2001).

Prêmio Attilio Micheluzzi por Dead Dead Demons Dededede Destruction (2018).

Prêmio de Excelência na Categoria de Mangá no 25º Festival de Artes da Mídia do Japão, por Dead Dead Demon’s Dededede Destruction (2020).

Seleção do júri na Categoria de Mangá no 13º Festival de Artes da Mídia do Japão, por Oyasumi Punpun (2020).

66º Prêmio Shogakukan de Mangá, por Dead Dead Demon’s Dededede Destruction (2020).

Outras obras do autor

Futsū no Hi (“Dia Normal”) (2000).

Sotsugyōshiki Jigoku (“Cerimônia de Graduação Infernal”) (2000).

Uchū kara Konnichi wa (2001).

What a Wonderful World (2002 – 2004). Publicado no Brasil pela Editora JBC em 2021.

Nijigahara Holograph (2003 – 2005). Publicado no Brasil pela Editora JBC em 2016.

A Cidade da Luz (2004 – 2005) Publicado no Brasil pela Panini em 2017.

Sekai no Owari to Yoake Mae (“O fim do mundo e antes do Alvorecer”) (2005 – 2008).

Solanin (2005 – 2006). Publicado no Brasil pela L&PM Editores em 2011.

Ozanari Kun (2008 – 2011).

Garota à Beira-Mar (2009 – 2013). Publicado no Brasil pela Editora JBC em 2025.

Ctrl+T (2010).

Planet (2010).

Toshi no Se (2012).

Kinoko Takenoko (2013).

Dead Dead Demons Dededede Destruction (JBC) (2014 – 2022). Publicado no Brasil pela Editora JBC entre 2021 e 2024.

Bakemono Recchan (2015).

Heroes (2015 – 2018). Publicado no Brasil pela Editora JBC em 2023.

Funwari Otoko (2016).

Sayonara Bai Bai (2016).

Decadência (2017). Publicado no Brasil pela Editora JBC em 2023.

Sābisueria (2018).

Tenpesuto (2018).

Moshi mo Tōkyō (2020).

Mujina Into the Deep (2023).

Reflexões finais

Há obras que entretêm, há obras que nos fazem refletir brevemente, e há obras de impacto. Boa Noite Punpun é uma obra de impacto profundo e consistente. O peso do realismo de seu roteiro é tão denso que leitor não consegue sair dele enquanto não chegar ao fim da obra. A representação fotorrealista do ambiente, habitada pela contrastante representação gráfica cartunesca de Punpun, dá o tom de uma obra que não se restringe. Asano não poupa o leitor em nenhum momento da realidade nua e crua. Ele vai no âmago da psiquê de seus personagens e os jogos frente aos olhos do capturado leitor em suas densas páginas.

Boa Noite Punpun entra para o rol daquelas poucas obras com potencial para deixar um impacto duradouro, seja pela representação da realidade sem floreios, ou seja pelo reflexo de nossa vida em sociedade em traços preto e branco. Boa Noite Punpun impacta.

A análise apresentada aqui se baseia nos 3 primeiros volumes do mangá.

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Biólogo/geneticista pesquisador na área de evolução humana, genética de populações humanas, coevolução gene-cultura, videogames e sua interação com a ciência. Pós-Doutorando no PPG Patologia/UFCSPA. Pesquisador colaborador no Game_Pesq, grupo de pesquisa sobre jogos eletrônicos, cultura e sociedade. Consultor científico no Science Game Center e no Molecular Jig Games. Autor no Nerdizmo.

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