Em 1995, para o 50º aniversário das Nações Unidas, Maya Angelou escreveu o poema “Uma Verdade Corajosa e Surpreendente”, dedicado “à esperança pela paz, que descansa, às vezes oculta, em todos os corações”.

O poema é extremamente relevante aos tempos atuais. A imperatividade das palavras de Maya manifesta sua habilidade de transformar as palavras em força e potência. Como uma verdadeira “matriarca”, como é consagrada nos Estados Unidos, sua terra natal.

Maya se refere ao planeta Terra como “um cisco de matéria”, deixando evidente sua inspiração no discurso memorável de Sagan sobre o nosso lugar no cosmos.

Em 1994, um ano antes de Maya trabalhar no poema, Sagan apresentava ao mundo a imagem da Terra vista a uma distância de 6 bilhões de quilômetros, uma foto que ele capturou em um lapso de espontaneidade, instantes antes que as câmeras da sonda Voyager 1 encerrassem a missão de fotografar os planetas do Sistema Solar.

Ao se deparar com a foto granulada mostrando um ponto distante, o cientista descreveu nosso planeta como um “Pálido Ponto Azul”, dando título à imagem e também a um de seus livros mais famosos, publicado naquele mesmo ano.

Sagan escreveu uma mensagem sobre nosso lugar na ordem cósmica, comunicando nossa humildade e responsabilidade, como sempre fez enquanto divulgador científico.

O Pálido Ponto Azul

“Considere novamente esse ponto. É aqui. É nosso lar. Somos nós. Nele, todos que você ama, todos que você conhece, todos de quem você já ouviu falar, todo ser humano que já existiu, viveram suas vidas. A totalidade de nossas alegrias e sofrimentos, milhares de religiões, ideologias e doutrinas econômicas, cada caçador e saqueador, cada herói e covarde, cada criador e destruidor da civilização, cada rei e plebeu, cada casal apaixonado, cada mãe e pai, cada crianças esperançosas, inventores e exploradores, cada educador, cada político corrupto, cada “superstar”, cada “lidere supremo”, cada santo e pecador na história da nossa espécie viveu ali, em um grão de poeira suspenso em um raio de sol.”

A passagem mais emblemática do texto de Sagan ressoou pela cultura daquela época, despertando um novo sentido na existência das pessoas.

Com “Uma Verdade Corajosa e Surpreendente” Maya trouxe sua própria interpretação, lançando uma luz a essa linha, por vezes oculta, em que a poesia e a ciência caminham juntas.

Poucas pessoas podem dizer que lutaram pelos direitos civis ao lado de Martin Luther King Jr. e Malcolm X, que foram condecoradas pelo primeiro presidente afro-americano dos EUA, Barack Obama, ou amigas íntimas de Oprah Winfrey. Além de ter um legado como a primeira motorista negra dos EUA, ou respeitada poetisa, escritora, professora, historiadora, atriz, dançarina, cantora. Tudo isso sendo uma mulher. Negra.

Maya foi tudo isso. E como se não bastasse, teve seu poema enviado para uma expedição espacial da NASA.

Essa mulher não tinha limites. Para a nossa sorte e inspiração.

Arquivos da NASA

De dezembro de 2014 a 6 de abril de 2015, o poema “Uma verdade Corajosa e Surpreendente” viajou a bordo da nave Orion, em um voo teste para futuras missões espaciais tripuladas até a Lua e Marte.

A Orion é a primeira cápsula projetada para levar humanos de volta ao satélite desde as missões Apollo (1961 e 1972). O segundo voo teste foi realizado em 2019, e a primeira missão tripulada deve acontecer em 2021.

“Grande parte do trabalho de Angelou fala de ambição e sonhos humanos. Foi uma honra levar parte de seu trabalho conosco no primeiro voo da Orion — um momento histórico que significa a busca de sonhos por muitos anos”, disse o gerente do programa da Orion, Mike Hawes durante uma cerimônia da NASA.

Trechos de livros e outros poemas de Maya, como “Ainda Assim Eu Me Levanto”, “Eu Sei Porque o Pássaro Canta na Gaiola” e “Nossas Avós”, completaram duas voltas na Terra e chegaram a 5,8 mil quilômetros acima do nosso planeta.

Em 2020, tanto “O Pálido Ponto Azul” quanto “Uma Verdade Corajosa e Surpreendente” ainda têm muito a nos dizer.

Uma Verdade Corajosa e Surpreendente – o poema de Maya Angelou inspirado em O Pálido Ponto Azul

Nós, esse povo, num planeta pequeno e solitário

Viajando casualmente pelo espaço

Passando por estrelas desinteressadas, pelo caminho de sóis indiferentes

Para um destino onde todos os sinais nos dizem que

É possível e imperativo aprender

Uma verdade corajosa e surpreendente.

E quando chegarmos a isso

Ao dia de pacificação

Quando soltarmos nossos dedos

Dos punhos da hostilidade

Quando chegarmos a isso

Quando a cortina cair sobre o espetáculo de menestréis do ódio

E os rostos sujos de escárnio forem esfregados

Quando os campos de batalha e o coliseu

Já não rastelarem nossos filhos e filhas únicos e particulares

Junto com a grama pisada e ensanguentada

Para deitá-los em covas idênticas em solo estrangeiro

Quando o ataque ganancioso das igrejas

E a extorsão barulhenta dos templos tiverem cessado

Quando as flâmulas balançarem alegremente

Quando as bandeiras do mundo tremerem

Por uma boa, leve brisa

Quando chegarmos a isso

Quando os rifles caírem de nossos ombros

E nossos filhos puderem vestir suas bonecas com bandeiras de trégua

Quando as minas terrestres da morte forem removidas

E os idosos puderem caminhar em noites de paz

Quando os rituais religiosos não forem perfumados

Por incensos de carne queimando

E os sonhos de infância não forem bruscamente acordados

Por pesadelos de abuso sexual

Quando chegarmos a isso

Então, admitiremos que não são as Pirâmides

Com suas pedras colocadas em perfeição misteriosa

Nem os Jardins da Babilônia Pendurados em beleza eterna

Na nossa memória coletiva

Nem o Grande Cânion

Aceso em cores deliciosas

Pelos entardeceres do Oeste

Nem o Danúbio, derramando sua alma azul na Europa

Nem o pico sagrado do Monte Fuji

Se esticando ao Sol Nascente

Nem o Pai Amazonas nem a Mãe Mississippi que, sem distinção,

Alimentam todas as criaturas das profundezas e das margens

Essas não são as únicas maravilhas do mundo

Quando chegarmos a isso

Nós, esse povo, nesse minúsculo globo

Que diariamente recorre a bombas, a lâminas e a adagas

E que ainda assim pede sinais de paz no escuro

Nós, esse povo, nesse cisco de matéria

Em cujas bocas habitam palavras corrosivas

Que desafiam nossa própria existência

Mas dessas mesmas bocas

Podem vir também sons de doçura tão requintadas

Que fazem o coração vacilar no seu trabalho

E o corpo se acalmar em reverência

Nós, este povo, neste planeta pequeno e à deriva

Cujas mãos podem atacar com tanto desembaraço

Que, num piscar de olhos, a vida é extraída de um ser vivo

Entretanto essas mesmas mãos ainda podem tocar com ternura tão terapêutica e irresistível,

Que o pescoço soberbo fica feliz em se curvar

E as costas orgulhosas têm prazer em se dobrar

Em meio a tanto caos, em meio a tanta contradição

Nós aprendemos que não somos nem anjos nem demônios

Quando chegarmos a isso

Nós, este povo, neste corpo caprichoso e flutuante

Criado nesta terra, desta terra

Temos o poder de criar para essa terra

Um ambiente em que cada homem e cada mulher

Possa viver livremente sem beatices

Sem medos paralisantes

Quando chegarmos a isso

Devemos confessar que somos o possível

Que somos o milagre, a verdadeira maravilha deste mundo

Quando, e só quando,

Chegarmos a isso.

[Poema traduzido por Lubi Prates na edição brasileira de Maya Angelou — Poesia Completa]

Acho indispensável conhecer o poema em sua língua original:

A BRAVE AND STARTLING TRUTH

We, this people, on a small and lonely planet
Traveling through casual space
Past aloof stars, across the way of indifferent suns
To a destination where all signs tell us
It is possible and imperative that we learn
A brave and startling truth

And when we come to it
To the day of peacemaking
When we release our fingers
From fists of hostility
And allow the pure air to cool our palms

When we come to it
When the curtain falls on the minstrel show of hate
And faces sooted with scorn are scrubbed clean
When battlefields and coliseum
No longer rake our unique and particular sons and daughters
Up with the bruised and bloody grass
To lie in identical plots in foreign soil

When the rapacious storming of the churches
The screaming racket in the temples have ceased
When the pennants are waving gaily
When the banners of the world tremble
Stoutly in the good, clean breeze

When we come to it
When we let the rifles fall from our shoulders
And children dress their dolls in flags of truce
When land mines of death have been removed
And the aged can walk into evenings of peace
When religious ritual is not perfumed
By the incense of burning flesh
And childhood dreams are not kicked awake
By nightmares of abuse

When we come to it
Then we will confess that not the Pyramids
With their stones set in mysterious perfection
Nor the Gardens of Babylon
Hanging as eternal beauty
In our collective memory
Not the Grand Canyon
Kindled into delicious color
By Western sunsets

Nor the Danube, flowing its blue soul into Europe
Not the sacred peak of Mount Fuji
Stretching to the Rising Sun
Neither Father Amazon nor Mother Mississippi who, without favor,
Nurture all creatures in the depths and on the shores
These are not the only wonders of the world

When we come to it
We, this people, on this minuscule and kithless globe
Who reach daily for the bomb, the blade and the dagger
Yet who petition in the dark for tokens of peace
We, this people on this mote of matter
In whose mouths abide cankerous words
Which challenge our very existence
Yet out of those same mouths
Come songs of such exquisite sweetness
That the heart falters in its labor
And the body is quieted into awe

We, this people, on this small and drifting planet
Whose hands can strike with such abandon
That in a twinkling, life is sapped from the living
Yet those same hands can touch with such healing, irresistible tenderness
That the haughty neck is happy to bow
And the proud back is glad to bend
Out of such chaos, of such contradiction
We learn that we are neither devils nor divines

When we come to it
We, this people, on this wayward, floating body
Created on this earth, of this earth
Have the power to fashion for this earth
A climate where every man and every woman
Can live freely without sanctimonious piety
Without crippling fear

When we come to it
We must confess that we are the possible
We are the miraculous, the true wonder of this world
That is when, and only when
We come to it.

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