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Pesadelos Completos: a obra de Hideshi Hino em toda a sua repulsividade

Hideshi Hino é um autor com foco no nojento, no abjeto, no repulsivo. Sempre há algo pútrido, putrefato. Seus contos/estórias são extremamente violentos, geralmente de forma explícita. Frequentemente retrata personagens bêbados. É um tom inquietante, grotesco e insano. Mas apesar de tudo isso, Hino toca em temas sensíveis, revelando melancolia. São obras que se enquadram no gênero terror, mas que têm finais tristes.

Páginas de Pesadelos Completos

A ambientação habitual nas obras de Hino apresenta um horizonte dominando por fábricas jogando densas fumaças no céu, rios extremamente poluídos ou valas de esgoto a céu aberto, geralmente com cadáveres de animais apodrecidos. Tal ambientação tem como base a paisagem real de Itabashi, onde Hino passou a infância.

Seu estilo de mangá teve influência em Junji Ito, maior expoente do mangá de terror da atualidade.

Pesadelos Completos (DarkSide Books, 2025) reúne seis contos/estórias de Hideshi Hino, publicadas originalmente entre 1970 e 1982.

Capa de Pesadelos Completos

Logo no começo há uma mensagem dizendo: “Esta antologia contém expressões consideradas impróprias nas convenções sociais atuais, mas elas foram mantidas como no original para respeitar o contexto histórico e a originalidade das obras em relação à época em que foram criadas.”. A questão é que toda obra é um reflexo de sua época. Assim como essa mesma mensagem é um reflexo da época atual, onde parece ter se tornado necessário explicar o óbvio.  

A doença bizarra de Zōroku

Publicado originalmente em 1970.

A forma como Zōroku, o personagem principal, é tratado pelos demais, tem um peso emocional muito grande. E depois, no momento em que ele fica isolado e pinta com o pus que sai de seu corpo, parece ser reflexo da vida como artista de Hideshi Hino.

A canção de ninar do inferno

Publicado originalmente em 1970.

É uma autobiografia do autor. Intercala elementos da realidade com ficção. Carregada de amor e ódio aos laços de família, aos quais não se pode escapar. Hideshi Hino já declarou anteriormente que se sente complexado por suas origens, principalmente por haver nascido na Manchúria, mas também por ter tido um avô que era viciado em jogos e um pai com tatuagem nas costas.

A narrativa autobiográfica/ficcional vem se mesclar com a realidade em outro nível quando ocorre a quebra da quarta barreira, com um grande zoom dramático no rosto do personagem autor, onde ele ameaça o leitor dizendo que ele vai morrer em 3 dias!

A premissa de A canção de ninar do inferno, onde o autor deseja a morte de pessoas, e elas ocorrem tal qual ele deseja, pôde ser vista muitos anos depois, sob uma nova roupagem, em Death Note (2003-2006). Mas tanto A canção de ninar do inferno, quanto Death Note parecem ter se inspirado em Now: Zero, uma estória curta de J. G. Ballard publicada em 1959 na edição de dezembro da Science Fantasy.

O ovo com manchas

Publicado originalmente em 1975.

Esta começa com um garoto brincando em uma vala de esgoto perto de sua casa, onde ele encontra um ovo com manchas coloridas, o qual ele leva para casa. Nesta estória, ao contrário do habitual na obra de Hideshi Hino, onde tudo é explícito, o monstro não é visto. Aqui, Hino faz uso de um dos “mantras” do gênero terror ao criar tensão com a expectativa crescente de que o monstro apareça.

Além disso, o enredo também difere da linearidade das demais estórias, pois se mostra cíclico.

Dentro d’água

Publicado originalmente em 1970.

Retrata a relação entre a mãe e o filho, que perdeu os quatro membros em um acidente, e a mudança gradual que corre nessa relação. O filho passa os dias observando um aquário, e os diferentes peixes mostrados vão acompanhando as mudanças no comportamento da mãe. Aqui vemos como Hino aborda temas sensíveis, neste caso fazendo uso de elementos de contos de fadas.

Panorama do inferno

Publicado originalmente em 1982.

Aqui temos novamente uma obra autobiográfica, com os elementos ficcionais, ainda mais aprofundada que A Canção de Ninar do Inferno. Panorama do Inferno foi a primeira obra de Hideshi Hino a ganhar tradução.

O personagem principal pinta com sangue. Alguns artistas contemporâneos reais também fazem uso de seu próprio sangue para pintar: Vincent Castiglia, Elito Circa, e o brasileiro Vinicius Quesada.

Panorama do Inferno é subdividido em “pinturas”, cada pintura aborda um personagem ligado ao artista/personagem principal.

O teor autobiográfico fica ainda mais reforçado quando mostra que a filha coleciona os mangás do pai (mangás do autor Hideshi Hino).

Há a presença de certos elementos que viriam a ser conhecidos mundialmente através de mangás/animes populares: Orochimaru, que originalmente faz parte do folclore japonês, viria a ser mundialmente conhecido como um personagem de Naruto; e Dragão Ascendente, técnica do personagem Shiryu, o Cavaleiro de Dragão, em Os Cavaleiros do Zodíaco.

Orochimaru, em Naruto.

Mas a referência mais impactante aparece na 11ª pintura: a bomba de Hiroshima é retratada como um grande demônio; e o personagem principal (autor) é retratado como filho da bomba atômica (filho do demônio). Lembrando que Hideshi Hino nasceu em 1946, um ano depois da bomba de Hiroshima.

O caso sinistro da casa das cobras

Publicado originalmente em 1972.

Diferentes dos demais contos em Pesadelos Completos, neste o tema principal é o erotismo.

Hideshi Hino

Hideshi Hino, pseudônimo de Yasushi Hoshino, nasceu em Qiqihar, Manchúria, em 1946. Com 1 ano de idade foi para o Japão como repatriado. Essa origem fez com que Hino carregasse um complexo, questionando-se constantemente se seria ou não japonês. Fez sua estreia como mangaka (artista de mangá) aos 21 anos em 1967 com Tsumetai Ase, publicado na COM.

Inicialmente Hino aspirava o gênero comédia, mas isso muda após ver os traços de Fujio Akatsuka e os roteiros de Ray Bradbury em Uma sombra passou por aqui.

Reflexões finais

Em um primeiro momento, Pesadelos Completos choca pelo traço. Pelas imagens grotescas, de corpos putrefatos, de violência explícita, imagens repulsivas. Mas essa visualização inicial vai dando lugar à uma leitura de vidas que são marcadas por temas sensíveis. Relações familiares são abordadas em situações de vulnerabilidade, as vezes impostas pelo entorno, as vezes parecendo fazer parte de um fluxo inexorável de laços familiares com vícios comportamentais nunca tratados.

Hideshi Hino tenta mostrar com a melancolia da vida de seus personagens, que há beleza na existência humana em si, independente do que possa estar se passando no momento.

Ao despir seus personagens das hipocrisias inerentes à vida em sociedade, Hino consegue chocar e gerar empatia simultaneamente. Pesadelos Completos é então um reflexo da existência humana, contraditória e bela, basta um olhar empático.

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Biólogo/geneticista pesquisador na área de evolução humana, genética de populações humanas, coevolução gene-cultura, videogames e sua interação com a ciência. Pós-Doutorando no PPG Patologia/UFCSPA. Pesquisador colaborador no Game_Pesq, grupo de pesquisa sobre jogos eletrônicos, cultura e sociedade. Consultor científico no Science Game Center e no Molecular Jig Games. Autor no Nerdizmo.

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