Enquanto a crítica especializada estrangeira é só elogios à série brasileira 3% (2016-), no Brasil a crítica torce o nariz. Complexo de vira-latas? Mais do que isso. A aposta da Netflix em uma produção sci-fi em língua portuguesa reafirma o interesse estratégico da plataforma de streaming no mercado brasileiro, ameaçando o mainstream da Globo e do negócio da TV aberta. Mas há algo além: enquanto a crítica brasileira tenta enquadrar a série no cânone das distopias “teens” como “Jogos Vorazes” e “Divergente”, “3%” fez mais do que isso, confundindo a todos – ao invés das tradicionais distopias hollywoodianas, a série apresenta uma desconcertante “hipo-utopia”: um espelho sombrio do Brasil atual apontado para o futuro. Uma alegoria política na qual a meritocracia transforma-se em religião, única esperança em um País transformado em um deserto rochoso com centros urbanos dominados pela desigualdade, miséria e violência. E um processo seletivo criado pela elite é a miragem de ascensão social na direção de uma terra supostamente utópica e longe do deserto brasileiro, na qual apenas 3% chegarão.

Com segunda temporada já em produção, a primeira série brasileira produzida para a plataforma de streaming Netflix gerou um fenômeno que muitos chamam de “complexo de vira-latas”.

Enquanto a série 3% (2016-) é elogiada pela crítica especializada estrangeira (aprovação de 7,8 no IMDB, elogios do indieWIRE, um dos sites de cinema mais respeitados do mundo, além de elogios rasgados de Henry Jenkins, um dos maiores pesquisadores em mídia), aqui no Brasil é descartada como produto abaixo da qualidade das outras séries Netflix. Uma espécie de “Jogos Vorazes piorado”, série com “ideia atrasada”, “série nacional que constrange” e assim por diante.

Uma flagrante má vontade que não percebe que o argumento da produção surgiu em uma websérie com três episódios lançada em 2011 criada por Pedro Aguillera, Jotagá Crema e Dani Libardi – portanto, antes dos primeiros Jogos Vorazes.

Enquanto a crítica estrangeira vê a série 3% como bem vinda e considera um “novo olhar sul americano para a ficção científica”, gênero que sempre teve o monopólio norte-americano, aqui no Brasil os críticos limitam-se a dizer que a série “não entrega o que promete”.

Por que essas reações tão desiguais? Esse humilde blogueiro acredita que a questão vai além do “complexo de vira-latas”. Os críticos nacionais parecem se prender aos cânones hollywoodianos do gênero (reality shows ou games mortais em sociedades distópicas com muitos efeitos especiais e altíssima tecnologia) e passam a acreditar que uma série como 3% tenta imitar os congêneres da Netflix – por isso acham que a série não entregou o que prometeu.

A aposta da Netflix em 3%

Mas esse argumento “vira-lata” é apenas um álibi: a motivação está em outra cena. A série 3% dá um importante passo para a produção audiovisual nacional. A opção da Netflix em apostar em uma produção inteira em língua portuguesa, com atores e produção nacionais fora do circuito da Globo e Globo Filmes reafirma o interesse estratégico da plataforma de streaming no Brasil.

Não é à toa que as críticas mais ácidas partiram do portal G1 da Globo – o grupo sabe que os dias da TV aberta (pelo menos no modelo atual de venda de espaço publicitário) está com seus dias contados diante dos interesses de gigantes como Google, Facebook e a própria Netflix no mercado brasileiro.

Mas há algo mais incômodo para uma parte dos críticos brasileiros: o fato da série 3% ser estranha e difícil de ser enquadrada no gênero “distopia”, como Jogos Vorazes ou Divergente. Ela está mais próxima da estranheza da série inglesa Black Mirror.

Isso porque, como veremos, 3% enquadra-se numa tendência chamada pelos estudiosos de cinema e audiovisual de “ficção científica do Sul” – filmes latino-americanos, de países periféricos à Zona do Euro ou originados nos BRICs cujas produções mostram um futuro que não é figurado nem pelo olhar distópico e muito menos pelo utópico: o futuro é mostrado pelo desconcertante ponto de vista da hipo-utopia. Alta tecnologia convivendo com favelas, deterioração urbana, precarização do trabalho e muito lixo que acaba se confundindo com os próprios seres humanos – sobre o conceito de “hipo-utopia” e “ficção científica do Sul” clique aqui.

A série nacional 3% incomoda porque projeta no futuro de forma hiperbólica e expressionista as mazelas que já estão no presente, no Brasil atual – o momento em que a meritocracia se transforma em religião em contextos de extrema desigualdade, miséria e injustiças. E como pessoas que não têm qualquer outra alternativa se submetem à humilhação e resignação tentando acreditar em um sistema supostamente justo, no qual “você faz o seu próprio mérito”.

A Série

No primeiro episódio é apresentada toda a mitologia que domina aquele mundo futuro. Nos créditos de abertura vemos um mapa brasileiro com o recorte do litoral do Pará. Uma seta sai da região amazônica até chegar a um ponto distante no alto mar brasileiro – uma localidade chamada Maralto.

A região da Amazônia (e pressupõe-se que todo o País) se transformou em um gigantesco deserto rochoso, com grandes áreas urbanas deterioradas, miseráveis e violentas. As ruas não passam de perigosas vielas nas quais vemos homens, mulheres e crianças maltrapilhas se arrastando em lugar escasso de recursos.

Aos 20 anos de idade, todo cidadão recebe a chance de se inscrever no chamado Processo: um rigoroso processo seletivo que consiste principalmente de provas cognitivas, morais e psicológicas que oferece somente a 3% dos aprovados a oportunidade de ascender ao Maralto, região onde as oportunidades de vida são supostamente justas e abundantes.

A mitologia que envolve o Processo diz que um “Casal Fundador” criou Maralto, uma sociedade utópica que se perpetua através da meritocracia na qual uma elite desfruta de uma ordem onde todos os problemas ambientais e sociais foram resolvidos por meio de altíssima tecnologia.

Mas entre os 97% condenados à miséria no Continente, cresce um movimento denominado “A Causa”, grupo revolucionário que denuncia a injustiça de todo o sistema. Seu objetivo é infiltrar militantes da Causa no Processo para sabotá-lo.

Ainda nessa primeira temporada não fica claro o plano da causa – se a sabotagem é apenas uma vingança pelas mortes e injustiças cometidas nas várias edições do Processo ou há um projeto político maior.

Muito além das distopias “teens”

O interessante (e inovador) na série 3% é que o Processo vai muito mais além das distopias teens como Jogos Vorazes ou Divergente. Tem muito mais a ver com os processos seletivos corporativos atuais – por isso, todo gestor de RH deveria assistir a essa série.

Pressões psicológicas, salas e corredores claustrofóbicos, dilemas ou escolhas impossíveis marcam os testes em ambientes cleans, de simplicidade asséptica em branco, cinza e azul, lembrando bastante outro filmes brasileiro hipo-utópico: 1,99 – Um Supermercado que Vende Palavras (2001) de Marcelo Mazagão (sobre o filme, clique aqui). Que a má vontade da crítica brasileira qualificou, como “produção pobre” fora do padrão Netflix.

O chefe do Processo, Ezequiel (João Miguel), observa a todos através de dezenas de câmeras como uma espécie de reality show, avaliando, ao lado de psicólogos, reações, atitudes e comportamentos – principalmente a capacidade de resignação, resiliência e a fé cega no ideário meritocrático que legitima todas as provas.

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