A monstruosidade ideologicamente amoral no filme Vida

A um mês do lançamento de “Alien: Covenant” no qual Ridley Scott dá continuidade ao anterior “Prometheus”, o filme Vida (Life, 2017) de Daniel Espinosa é lançado. Com o mesmo plot de Scott para “Alien” (1979): astronautas aprisionados em uma nave encurralados por um espécime predador extraterrestre praticamente indestrutível. Em 1979, Scott rompeu com uma tradição da figuração dos monstros no cinema: dos seres disformes e mórficos para os informes, xenomórficos e híbridos – os “monstros moles”. Seres amorais que matam não por maldade, mas por sobrevivência. Em “Vida” Espinosa retoma essa monstruosidade contemporânea, porém sem o cinismo crítico e gnóstico de Scott: lá, o alien xenomórfico fazia parte de conspirações de demiurgos; aqui em “Vida”, o parasita-predador é uma amostra de que o evolucionismo de Darwin rege o próprio Universo e o monstro é o ápice da perfeição das leis da adaptação e seleção natural. As mesmas leis que também regem os mercados aqui na Terra.

O filme Vida chega aos cinemas em um momento oportuno no qual a NASA vem anunciando uma série de descobertas fundamentais na busca de vida extraterrestre – a descoberta do sistema TRAPPIST-1 com três planetas potencialmente habitáveis foi a principal.

Mas também em um momento não tão oportuno: em maio estreia a continuação do filme Prometheus (2012), Alien: Covenant, no qual Ridley Scott dá continuidade à saga do terrível predador extraterrestre iniciada por Alien em 1979.

A comparação é inevitável, e muitos críticos transformaram Vida numa espécie de aperitivo bem inferior ao plot original criado por Scott em 1979: astronautas aprisionados em uma nave em um lugar longínquo no espaço encurralados por uma espécie predadora extremamente eficiente e praticamente indestrutível.

Por isso o filme Life suscita duas questões que esse humilde blogueiro vai explorar nessa postagem: (a) o filme levanta a urgente necessidade de desenvolver uma disciplina específica nos estudos sobre o Cinema, a Cineteratologia: a disciplina que estudará as representações dos monstros em particular (e do Mal em geral) no cinema com suas implicações ideológicas;

(b) Como o cinema vem em recentes filmes como A Chegada (Arrival, 2016) retratando a incomunicabilidade radical do homem com a possível descoberta de vida extraterrestre – no dia em que finalmente encontrarmos vida fora desse planeta, simplesmente não conseguiremos compreendê-la. O que tornará um risco para nós mesmos.

Ridley Scott inaugurou uma inédita representação da monstruosidade no cinema com Alien em 1979 – um monstro com morfologia híbrida envolta em gosma que serviu de modelo para todos os futuros aliens resultantes de manipulações genéticas e zumbis de toda espécie e variações com feridas e pústulas que acabam deixando pelo caminho pedaços dos próprios corpos que, por sua vez, se transformam em ameaças mortais – vide Cloverfield, Monstro de 2008.

A grande diferença entre o monstro híbrido de Scott e o ser extraterrestre parecido com um calamar do diretor Daniel Espinosa é a abordagem ideológica: enquanto em Scott há um tom cínico de um diretor ateu (conspirações corporativas e “engenheiros” Demiurgos alienígenas tão perdidos quanto o próprio homem), em Vida de Espinosa o calamar predador é encarado um ser superior na escala da evolução cósmica.

Em Vida parece que todo o Universo é regido pelas leis da Evolução e Seleção Natural de Darwin e o homem será derrotado não porque a monstruosidade é “maligna” – o homem perecerá porque é inferior na seleção natural cósmica. O Universo é amoral e o homem nada tem o que fazer, a não ser deixar de existir.

O Filme Vida

Vida começa em alta rotação com movimentos de câmera que lembram bastante o filme Gravidade (2013) de Alfonso Cuarón, mas se distinguindo pela atmosfera claustrofóbica que só aumenta a sensação de vertigem com as constantes rotações de câmera.

Uma sonda está chegando de Marte em alta velocidade e descontrolada após bater em lixo espacial na proximidade da Terra. Ela leva amostras do solo marciano e a tripulação da Estação Espacial Internacional tem a missão de capturá-la com seu braço mecânico para posteriormente analisar as amostras em seu laboratório.

A expectativa, claro, é a descoberta de algum indício de vida. E o que eles descobrem é um organismo unicelular diferente de tudo encontrado antes.

Observado no microscópio em uma placa de Petri, parece um protozoário ciliado em estado aparente estado de hibernação ou mesmo morto. Os cientistas tentam reanima-lo com diversas combinações de atmosferas. Até que a composição mais próxima da atmosfera terrestre revive o ser.

A notícia enviada para Terra transforma em um grande acontecimento midiático. Como chamá-lo? Um concurso escolar é realizado, e as crianças que sugerirem o nome vencedor terão direito a entrevistar ao vivo os astronautas da Estação Internacional. O nome vencedor é “Calvin”.

Tudo que Calvin precisa é oxigênio e glicose para começar a se reproduzir, se dividir. Torna-se um ser cada vez mais complexo que se liberta da placa de Petri com pequenos tentáculos que tocam nas mãos em grossas luvas do cientista que manipula a experiências em um recipiente lacrado. Os tentáculos parecem dançar harmoniosamente, ajudando ainda mais “humanizar” a criatura.

Vem a grande descoberta: Calvin é um ser fractal: cada célula é ao mesmo tempo músculo, nervos e cérebro – “fracta”: estrutura geométrica complexa cuja unidade reproduz infinitamente dentro de si o padrão do todo.

Calvin é louvado como um grande exemplo das leis da evolução e seleção natural (foi capaz de hibernar por milhares de anos e sobreviver em um planeta morto), até que um previsível acidente fará o alien escapar do laboratório. O problema é que ele é mais do que um predador: é também um parasita. Vai grudar como um carrapato na vítima, se alimentar e crescer, física e intelectualmente – e esse surpreendente “intelecto” de Calvin é o que determinará o trágico final.

Começa então o jogo de caça mútua pelos labirínticos e claustrofóbicos corredores da estação espacial. A prioridade será de alguma forma enviar Calvin de volta ao espaço profundo para evitar seu contato com a atmosfera terrestre próxima. O que seria catastrófico para a humanidade.

Monstros Moles

Alien de Ridley Scott foi um divisor de águas (ou de sangue) na representação da monstruosidade no cinema. Dos monstros clássicos disformes (criaturas excendentes ou excessivas como centauros, ciclopes, pigmeus, frankensteins, vampiros etc. baseado nas categorias como o mau, o feio, o disforme, o disfórico) passamos para os informes – os “monstros moles”, que precisam se alimentar do outro não para se alimentar, mas para se reconstituir; monstros de disseminação viral como zumbis ou modelos de informidade: aderem ao hospedeiro, numa espécie de suspensão morfológica.

Mas a grande viragem é a amoralidade dos novos monstros: são máquinas fascinantes de evolução, adaptação e sobrevivência. Há uma neutralização ética: não há um desvio moral, mas o aprimoramento da performance que, na sua evolução, vê o homem cruzar os eu caminho para se tornar apenas mais uma presa menos evoluída – sobre a Cineteratologia, a ciência dos monstros no cinema, clique aqui.

Mas Ridley Scott vê tudo isso com cinismo gnóstico: essas máquinas evolutivas podem ser instrumentos de maldade nas mão de demiurgos, sejam corporativos (como no Alien em 1979) ou alienígenas – os “engenheiros” de Prometheus).

Ao contrário, no filme Vida há uma extrema amoralidade sem quaisquer questionamentos: tudo que ocorre é uma fatalidade decorrente das leis darwinianas que parece reger todo o Universo.

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