“Quem quer faz, quem não quer arruma uma desculpa”. Essa corruptela de um velho dito popular brasileiro ilustra muito bem a situação do diretor iraniano Jafar Panahi (do aclamado Isto não é um filme) em sua obra mais recente: Cortinas Fechadas.
Ilustra porque Panahi encontra-se preso desde 2010, pois a República Islâmica o acusa de fazer propaganda anti-governamental em seus filmes. Desta forma, o diretor está proibido de filmar pelos próximos vinte anos, o que, obviamente, não o impediu de realizar este filme. A obra foi exibida na última Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e entra em cartaz no Brasil em 3 de abril.
Panahi, autor do premiado roteiro (Festival de Berlim), nos apresenta uma trama densa cuja tessitura demonstra a habilidade de alguém que sabe esmiuçar seu ofício e trabalhar com recursos escassos. Além de Panahi, que interpreta a si mesmo, há mais três personagens que se destacam no filme: a moça, o escritor e seu cachorro. Cada um deles, por um ou outro motivo, precisa se manter escondido. O esconderijo em questão é a casa de Panahi, que se encontra, atualmente, em prisão domiciliar (sua casa mesmo, na vida real e na representada).
O personagem do escritor se esconde, a princípio, para proteger seu cachorro, que é proibido segundo as leis islâmicas por ser considerado um ser impuro. A cena inicial, longa e sem narração ou diálogos, condensa exemplarmente a situação desses dois personagens (e, por conseguinte, a de Panahi): a câmera está posicionada do lado de dentro da casa de modo a mostrar a bela paisagem marítima do exterior.
A vista da praia é interceptada pelas grades da janela, em contraluz. Ao longe está o escritor, que se aproxima da casa com uma pequena mala, na qual está escondido o seu cachorro.
Vastidão x clausura: com isso o diretor já estabelece as tensões que cerceiam a obra e faz um paralelo com sua própria situação de prisioneiro dos aiatolás. A partir daí, toda a trama transcorrerá no interior da residência. Uma vez dentro, o escritor se certifica de que todas as cortinas estão devidamente seladas, e acrescenta-lhes pesados panos negros que obstruem a entrada da menor nesga de luz externa, e impedem qualquer um que esteja fora de saber que a casa é habitada.
Ao que tudo indica, esse exílio auto-imposto lhe servirá também para trabalhar em seus textos, porém tudo muda quando surge na casa uma jovem mulher, também fugitiva do governo, que pretende compartilhar o esconderijo do escritor, mesmo contra a vontade deste.
A relação de Panahi com esses três personagens ocorre de um modo bastante desconcertante. A obra é tão aberta e cheia de significantes, que é possível, até mesmo, estabelecermos uma leitura psicanalítica do que transcorre. Sob essa perspectiva, a moça, o cachorro e o escritor podem muito bem se comportar como as instâncias fundamentais descritas na segunda tópica freudiana, ou seja, os personagens encarnariam id, ego e superego, de Panahi, nessa ordem.
O diretor não poupa o público de momentos que demonstram o fanatismo e a crueldade do regime islâmico, mas sabe fazer isso de forma comedida. A cena que mostra os cachorros sendo perseguidos e violentamente mortos nas ruas de Teerã já é didática o suficiente nesse sentido, gerando o contraponto necessário para que o roteiro aprofunde as consequências desses excessos no microcosmo que é a vida do diretor enclausurado.
Realidade e ficção se misturam a todo momento durante o filme, ressaltando o papel de crítica social da obra, sem desprezar seu caráter lírico. O resultado é um filme-manifesto que exalta o poder de um artista singular e o grande potencial da arte em se manifestar mesmo em condições tão adversas, opondo-se aos elementos, às circunstâncias e arbitrariedades de um regime arcaico e atroz.
Nota: 4/5
Cortinas Fechadas
Diretor: Jafar Panahi e Kambuzia Partovi
Duração: 106 minutos
Elenco: Jafar Panahi, Kambuzia Partovi, Maryam Moghadam
Gênero: Drama
Lançamento: 3 de abril de 2014
Autor: Daniel Robledo