O que há em comum entre o filme mexicano Santa Claus (1959, aka “Santa Claus vs. The Devil”) e Star Wars Holiday Special (1978), o especial de Natal da CBS, considerado a pior coisa já feita para a TV? Cada uma dessas produções, na sua época, traduziu o Natal de acordo com o “espírito do tempo”. O primeiro, na esteira do início da corrida espacial e Guerra Fria EUA e URSS. E o segundo, no rastro do sucesso do filme de 1977, já antevendo o computador pessoal e compras e comunicação através da Internet. Contextos tecnológicos e políticos diferentes que criaram, cada um no seu tempo, formas diferentes de interpretar os simbolismos natalinos: o primeiro, global; o segundo, cósmico. Mas os destinos das produções foram diferentes: “Santa Claus” foi um dos filmes natalinos mais reprisados da TV norte americana; enquanto “Star Wars Holiday Special” foi renegado pelos atores, fãs e pelo próprio George Lucas: “eu queria apenas tempo e um martelo para destruir cada cópia”, lamentou.
O pensador Theodor Adorno considerava toda arte como um sismógrafo do seu tempo. Mais especificamente, o historiador francês Marc Ferro considerava qualquer filme como um documento por representar o imaginário, sensibilidades e transformações de uma época. Principalmente o cinema de ficção, que abriria um excelente caminho no campo da história psicossocial – leia FERRO, Marc, Cinema e História, São Paulo: Paz e Terra, 1992.
Aproveitando esse momento das comemorações natalinas e seguindo o pensamento desses dois pesquisadores, a produção fílmica em torno dos simbolismos do Natal (nascimento de Cristo, Papai Noel etc.) é uma ótima oportunidade para percebermos as mudanças desses simbolismos – como se converte em quase um espelho da sensibilidade de cada época.
Para começar, as origens da figura do Papai Noel: ora descendente de uma longa linha de soturnos, sujos e peludas criaturas remanescentes da era pré-cristã (como “Percenickel” que na Alemanha acorrentava crianças mal educadas), ora originado na lenda de São Nicolau, bispo de Myra (Turquia), padroeiro das crianças, marinheiros e santo casamenteiro.
Dois Papais Noéis
Por isso, no cinema é visível duas linhas distintas: de um lado, a imagem do bom velhinho imortalizada pela publicidade da Coca-Cola e nos filmes otimistas sobre o “espírito de Natal” (Meu Papai é Noel (1994), Santa Claus, a verdadeira história do Papai Noel (1985), Titio Noel (2007), Milagre na Rua 34 (1994) etc.; e do outro, o resgate dos temores pré-cristãos pela entidade sombria – Rare Exports: Natal Bizarro (2010), Uma Noite de Fúria (2005), Silent Night, Deadly Night (1984), Natal Sangrento (2012) entre outros.
Mas além de atualizar arquétipos antigos, as diferentes representações do Papai Noel e do Natal também espelham mudanças bem recentes – tecnológicas, sensibilidade, imaginário etc.
Dois filmes estranhos e trash são exemplos disso: o mexicano Santa Claus (1959, aka Santa Claus vs. The Devil) e o especial de natal para a TV norte americana Star Wars Holiday Special (1978), considerado por muitos críticos como a pior coisa já produzida pela TV. Tão ruim, que poderia ter matado a saga Star Wars para todo o sempre.
O primeiro, na esteira do início da corrida espacial com o impacto do satélite russo Sputnik e a explosão da ficção científica em meio à Guerra Fria EUA e URSS. E o segundo, no rastro do sucesso do filme de 1977, já antevendo o computador pessoal e compras e comunicação através da Internet.
São contextos tecnológicos e políticos diferentes que criaram, cada um no seu tempo, formas diferentes de interpretar os simbolismos natalinos: o primeiro, global; o segundo, cósmico.
Santa Claus contra Satã
Todas as tentativas de colocar Papai Noel na tela grande são inevitavelmente estranhas. Pode ser como um personagem coadjuvante numa história de redenção de outra pessoa, inventar uma mitologia bem elaborada que explique sua aparição na atualidade e reflita a era moderna, ou coloca-se em contextos descontroladamente inesperados. Como é o caso do filme mexicano Santa Claus.
Papai Noel vive em um castelo, acima das nuvens no Polo Norte, no espaço. Aproxima-se a data natalina em que descerá à Terra na seu trenó levado por renas eletromecânicas. Mas Satã tem planos para estragar o Natal de Papai Noel e das crianças: enviar um pequeno e dedicado demônio vermelho cuja missão é “inspirar” as crianças do planeta a fazer o mal e não serem mais merecedoras dos presentes de Santa Claus. E ocasionalmente, sabotar chaminés, lareiras, provocar discórdias e mal entendidos até que Santa seja visto como uma pessoa perigosa para todos.
Mas tudo soa muito estranho: um velho que dá sonoras risadas todo o tempo, cuidadosamente monitora a obediência e prevaricação das crianças em todo o mundo com estranhos equipamentos que invejariam CIA e KGB na Guerra Fria – um super-telescópio que rastreia imagens como um satélite, um “tele-orelha” (para ouvir à distâncias) e um bizarro “tele-talker”, uma espécie de pinball arcade com imensos lábios que falam em comunicações à distância.
E uma imensa fábrica de brinquedos com força de trabalho infantil de diferentes países. Ele ainda conta com a ajuda do Mago Merlin e do deus da metalurgia Hefesto. Merlin dá a Santa Claus um pó para fazer as crianças dormirem e terem “sonhos sobre a paz e boa vontade entre os homens” e um flor que dá a invisibilidade quando cheira…
Santa Claus segue à risca os detalhes da lenda do Papai Noel. Porém, há sempre uma estranha torsão dos sentido original, criando uma atmosfera de estranheza: se os planos de Papai Noel são tão bons e altruístas, por que precisa fazer tudo em segredo? Por que Santa Claus trabalha de forma tão furtiva e misteriosa, assim como o demônio enviado por Satã?