Considerado o mais influente dos filmes cult, clássico do chamado “Cinema da Meia-Noite”, “Eraserhead” (1977) foi o filme de estreia na carreira do diretor David Lynch. Num mix de terror gótico, surrealismo e humor negro, o filme manteve os seus mistérios simbólicos ao longo dos anos. Embora se baseie em um simples plot (a namorada engravida e leva seu namorado para que seus pais o conheçam), os cenários alucinatórios, o design de som hipnótico e uma das melhores fotografia em PB da história do cinema fazem desse filme o fundador do tema que acompanhará David Lynch por toda a carreira: por mais banal que pareça a realidade, nosso psiquismo a interpreta por meio de sonhos, pesadelos e alucinações que criam uma relação de estranhamento com o mundo. Mas alguém controla essa realidade, e não somos nós. Para chegarmos a esse Demiurgo, somente através do conhecimento dos mecanismos do psiquismo. Por isso, “Eraserhead” tem um evidente sabor gnóstico.

Freud descobriu que o psiquismo era a interface entre a alma e a materialidade das funções corporais: alimento, excreção, reprodução e morte. A forma como a alma vivencia essas experiências corporais será sempre por meio das fantasias, do desejo e dos simbolismos manifestos nos sonhos, atos falhos e neuroses.

A descoberta dessa realidade psíquica incendiou a imaginação artística com o surrealismo, expressionismo e mesmo o dadaísmo – tentaram transformar em imagens esse mundo psíquico que tenta dar um sentido onírico ao alimento, a excreção, a sexualidade e a finitude.

No cinema, teóricos como Eisenstein, Lindgrem e Arheim acreditavam que o cinema deveria evitar a mera representação realista da realidade. Surrealistas, dadaístas e cubistas foram os primeiros a defender o cinema como arte através da possibilidade do diretor modelar o mundo fílmico e enquadrá-lo dentro de uma ideia abstrata e se enveredar pelas imagens do psiquismo e do inconsciente.

O diretor norte-americano David Lynch certamente é um seguidor desse legado teórico no qual a missão do cinema é representar através da linguagem audiovisual como essa interface onírica cria um fluxo contínuo de fantasias, sonhos e pesadelos a partir do contato da alma com o mundo material.

Eraserhead (1977), o primeiro longa metragem do diretor, um mix de terror surrealista com humor negro, foi uma verdadeira carta de intenções criativas de Lynch que o orientaria por toda a sua carreira – Veludo Azul, Twin Peaks, Estrada Perdida, Império dos Sonhos etc. O conceito central do filme (garoto encontra garota grávida de um bebê mutante) é corriqueiro no repertório do Gótico norte-americano.

O que é surpreendente é que Lynch pegou um argumento tão banal (a namorada engravida e convida seu namorado para apresenta-lo aos seus pais) e conseguiu entrar numa zona de penumbra entre o surrealismo de Buñuel e o humor negro e corporal do protagonista Henry com seus adereços de marca registrada: as canetas no bolso do peito, as meias brancas, o rosto sempre com uma expressão de alarme e o cabelo para cima como se tivesse tomado algum choque elétrico.

E a emblemática sequência da “garota-atrás-do-radiador” cantando a música In Heaven com um visual a la Marilyn Monroe, mas com as bochechas deformadas, enquanto pisa em vermes fetais…

O Filme

Assistido em DVD confortavelmente em sua casa talvez Eraserhead não traga o mesmo impacto dos anos 1970, quando o filme tornou-se reconhecido no chamado circuito do “Cinema da Meia Noite” de Nova York, ao lado de filmes estranhos como El Topo de Jodorowski ou Rock Horror Picture Show. Assistir ao pesadelo surreal de Lynch no conforto de casa, tira o filme do seu contexto original – ir a um cinema à noite, localizado em partes industriais e solitárias da cidade criava a atmosfera ideal para fruir filmes estranhos e cults como Eraserhead.

Produzido com uma bolsa da American Film Institute, período em que Lynch estudava na instituição, levou seis anos para ser produzido por dificuldades financeiras. Quando estreou em 1977 recebeu poucos comentários especializados e pobres bilheterias. Não fosse os esforços do distribuidor Ben Berenholtz em convencer proprietários de alguns cinemas de Nova York, o filme não conquistaria a base de fãs leais que tornaria Eraserhead o mais famoso de todos os filmes cult.

O núcleo da narrativa é simples: situado em um devastado mundo industrial levemente pós-apocalíptico acompanha a vida de Harry Spencer (Jack Nance) que trabalha em uma empresa de impressão gráfica. Uma noite ele retorna para sua casa situada em um prédio pobre e em ruínas. Chegando lá, recebe o recado da sua vizinha (uma mulher misteriosa, sensual e fatal) de que sua namorada (Mary X – Charlotte Stewart) deixou um recado de que ele fora convidado para um jantar a fim de conhecer seus pais.

Na casa de Mary, Henry viverá a mais estranha variante do velho tropo do cinema “namorado-conhece-família-da-namorada”: a avó vive sentada em um canto da cozinha em estado catatônico, o pai (um encanador) se gaba de não ter nenhuma sensação no braço esquerdo. Afinal, “canos não se consertam sozinhos”. A mãe, a certa altura, lambe o rosto de Harry. Num canto há uma cadela com uma ninhada inteira mamando em suas tetas. E o prato consiste de pequenos frangos artificiais dos quais jorra uma estranha gosma quando espetados com o garfo. “Corte-os como um frango normal”, diz alegremente o pai. Detalhe: eles ainda estão se mexendo…

E finalmente a revelação: a filha engravidou e teve parto prematuro. O bebê está no hospital, à espera de que eles se casem para buscar o filho.

O bebê… como descrevê-lo! Imagine um cruzamento entre uma versão fetal de ET e alguma forma de ruminante que passa o dia chorando, gritando e cuspindo. Depois de alguns dias de uma grotesca versão de tranquilidade doméstica, Mary X pega sua mala e abandona Henry, deixando-o sozinho para cuidar do estranho “bebê”.

Nossos olhos não enxergam o real

Essas linhas acima podem descrever mais ou menos o que acontece em Eraserhead. O filme utiliza um cenário alucinatório e um design de som hipnoticamente sombrio – uma combinação de ruído industrial, radiadores a vapor e a música In Heaven de Fats Waller. Aliás, encontrado morto assassinado a marteladas em 1983 em seu apartamento.

Na medida em que a narrativa avança, as alucinações de Henry aumentam. Lynch nesse filme inicia um tema que será o eixo de seus filmes por toda a carreira: nossa relação com as percepções físicas da realidade são filtradas e simbolizadas pelo psiquismo. Nunca vemos a realidade como ela é, mas a partir das nossas sensações de estranhamento e alienação em relação ao real.

Não são nossos olhos que enxergam o real, mas o psiquismo que mantém separados a alma e o mundo.

Estranhamento e alienação são os termos chaves para entender Eraserhead. Henry, sempre com expressões entre o alarme e o terror, e sua expressão corporal frágil, curvada e hesitante, é o próprio estranhamento em relação a esse mundo.

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