A série mais explode cabeças dos últimos tempos chegou ao fim. Não poderia haver conclusão tão bem amarrada e arrepiante como o final de Dark. Os criadores Baran bo Odar e Jantje Friese são mentes inquietas.

Não houve nenhuma pergunta que não fosse respondida e, ainda assim, tiveram muitas reviravoltas e uma conclusão que deve penetrar nos espectadores que acompanharam a série por muito tempo.

Dark uniu teorias e paradoxos científicos e filosóficos para nos tirar da zona de conforto, propondo um novo olhar sobre tudo o que nos cerca.

Portanto, nós temos algumas considerações sobre o final de Dark, cujas referências que recorrem a ideias que acompanharam a humanidade ao longo dos séculos, estavam muitas ali, o tempo todo, estruturando a narrativa.

*Alerta de spoiler

Os pilares filosóficos no final de Dark

Ariadne e Dark: O Mito do Labirinto

O final de Dark e seus pilares filosóficos

Na mitologia grega, Minos, rei de Creta, constrói um labirinto onde coloca em seu centro o Minotauro: anualmente, ele envia sete rapazes e sete moças para serem sacrificados pela criatura.

Ao encarregar sua filha Ariadne como responsável pelo labirinto, ela se apaixona por Teseu, e lhe dá uma espada e um fio de novelo para que ele marque o percurso e consiga retornar aos seus braços. Ele escapa, e ambos fogem juntos de Creta. Há controvérsias sobre o fim da história, mas em um deles, Ariadne é abandonada por Teseu durante a viagem.

Desde a primeira temporada, as filmagens mostram sutilmente os pôsteres de Ariadne no quarto de Martha. Há também momentos em que ela aparece ensaiando um monologo como a personagem, para uma peça de teatro da escola. Cena que ressurge na terceira temporada, quando Jonas persegue Martha na dimensão dela.

A metáfora do fio de Ariadne fica cada vez mais forte ao longo dos episódios. Tudo o que Adam faz em sua dimensão para conceber seu plano de criação de um paraíso, na verdade está ligado ao fio em que Martha o conduz para que ele tome as mesmas decisões, infinitas vezes.

Jonas e Adam são representações tanto de Teseu quanto do Minotauro. É Eva, a Martha do futuro, com papel fundamental como Ariadne, que direciona as ações de Adam para concluir seu próprio plano de manter tudo acontecendo infinitamente; ao contrário do que Adam queria.

O Labirinto é representado por esta teia complexa de viagens no tempo e nas cavernas dentro da gruta, as quais são navegadas através de um fio vermelho.

 Adam e Eva

O final de Dark e seus pilares filosóficos

Assim como as figuras bíblicas, Jonas e Martha, Adam e Eva no futuro, cometem um pecado: não podem fazer parte do paraíso e por isso causam o apocalipse.

O paraíso é o mundo original, onde Tannhaus usou a máquina do tempo para reverter a morte do próprio filho e acabou dividindo outros dois mundos: um de Martha e um de Jonas. Uma pequena alteração dos eventos criou uma cadeia infinita de causa e efeito: dor e sofrimento.

Enquanto Adam quer destruir os dois mundos para que não exista absolutamente nada, apenas a escuridão, Eva deseja manter tudo acontecendo infinitamente: morte e vida; fins e começos.

Triquetra: os três mundos conectados

O final de Dark e seus pilares filosóficos

Cláudia se volta contra ela mesma que estava a comando de Martha para finalmente acabar com os dois mundos e manter apenas o terceiro mundo, o original: os três estavam interconectados.

O símbolo da Triquetra, presente desde o início da série, simboliza essa conexão entre os três mundos: ele representa o Infinito nas três dimensões ou a Eternidade.

De origem celta, nesta tradição ele diz respeito às três faces da Grande Mãe, a energia criadora do Universo: a Virgem, a Mãe e a Anciã. Ele era inscrito em pedras, capacetes e armaduras, representando a interconexão e interpenetração dos níveis Físico, Mental e Espiritual.

No cristianismo, a Triquetra representa a santíssima Trindade.

Dark faz muitas referências bíblicas e simbologias presentes em religiões diferentes que, à sua maneira, representavam basicamente a mesma coisa, apenas com credos distintos.

O livre-arbítrio é uma ilusão

Adam mata os envolvidos no plano de Eva na tentativa de fechar um ciclo para que ele nunca mais se inicie novamente, mas falha devido ao fio que Eva deu a ele desde o início. Ele também usa a energia dos dois apocalipses para destruir Martha e seu filho: o que eles julgavam ser a conexão entre os dois mundos e, portanto, a origem de todo o caos.

Mas quando Cláudia revela que o terceiro mundo é a origem, ela e Adam encontram um meio de suspender o tempo para encontrar uma brecha no terceiro mundo e enviar Jonas e Martha para que eles impeçam a catástrofe que levaria Tannhaus a criar os dois mundos.

Neste ciclo infinito de causa e efeito, não há livre arbítrio em nenhum dos mundos: nem para Tannhaus, nem para Adam, Jonas, Martha e qualquer outro personagem envolvido nessa conexão entre diferentes dimensões.

Isso nos leva a duas vertentes filosóficas que estruturam fortemente a narrativa de Dark.

“Você é livre para fazer o que quer, e também para querer o que quer?”

Essa pergunta aparece com frequência ao longo da terceira temporada.

É uma variação da máxima de Arthur Schopenhauer, filósofo pessimista alemão que no século 19 marcou sua ideia sobre o livre-arbítrio:

“O homem pode fazer o que ele quer, mas não pode querer o que ele quer”.

Para Schopenhauer, as ações humanas que exprimem liberdade, sempre se encontram persuadidas por alguma razão: sempre são conduzidas por motivos externos. Além dos influenciadores externos, as escolhas sempre estão limitadas pela vontade.

A vontade é definida por Schopenhauer como a essência metafísica que compõe a natureza. Há sempre uma causa interferindo no ato, ou seja, sempre a intervenção da “coisa em si” em qualquer ação tomada pelo homem.

Isso significa que não é possível haver a liberdade plena, em termos de liberdade física, moral e intelectual – tríade da liberdade que Schopenhauer analisa – porque a escolha nunca é genuína, já que sempre será influenciada por fatores externos.

Como as ações humanas estão sempre submetidas à necessidade, o homem apenas seria livre se estivesse emancipado de qualquer necessidade. Sendo assim, a liberdade é uma ilusão, já que o homem é sempre condicionado por algo: aquilo que ele pensa querer não condiz com um querer genuíno.

Entender isso é importante tanto para absorver a essência filosófica que Dark aborda tanto para entender que o loop infinito de causa e efeito tem como fonte a vontade dos personagens centrais Adam, Martha e Tannhaus.

Consequentemente, eles geram ações condicionadas de todos os outros personagens envolvidos neste nó, que tomam decisões voluntariamente o involuntariamente: seja por si próprios na reação de eventos externos ou na influência de viajantes do tempo que os conduzem a tais ações.

Um exemplo disso é quando Jonas vê o corte no lado oposto do rosto de Martha e decide não abrir os barris da usina para impedir o apocalipse: decisão que culmina, no fim das contas, no próprio apocalipse.

Os mundos de Martha e Jonas têm que acabar porque Adam e Eva são movidos pela vontade e não irão, em momento algum, parar de fazer o que fazem infinitas vezes.

A morte do filho de Tannhaus tem que ser impedida por Martha e Jonas porque é essa dor da perda que motiva Tannhaus a acionar a máquina no tempo e criar, consequentemente, os mundos de Martha e Jonas. Ou seja, ele nunca deixaria de perseguir a mesma coisa: reverter a morte.

Dark também faz muitas referências à Einstein com sua teoria sobre o buraco de minhoca, mas não só isso.

Einstein era um leitor assíduo de Schopenhauer e compartilhava de alguns aspectos de sua filosofia, especialmente a do livre-arbítrio. Para o físico, o livre-arbítrio é uma ilusão, o mundo é determinado e regido de acordo com as leis da natureza.

E como o número três está sempre presente em Dark, por coincidência ou não, o biógrafo de Einsten, Rudolf Kayser, já disse que o físico tinha o retrato de três figuras pendurados na parede de sua sala de estudo em Berlim, em 1920: James Clerk Maxwell, Michael Faraday e Arthur Schopenhauer.

O Eterno Retorno

Eva quer que tudo acabe e comece de novo em um ciclo infinito de destruição e criação. Ideia fortemente apoiada na teoria do Eterno Retorno.

Na teoria do Eterno Retorno, o universo e toda a existência e energia já aconteceram e devem acontecer, de mesma maneira, infinitas vezes através do tempo ou espaço infinito. Há um padrão cíclico de recorrências.

A teoria é encontrada na filosofia indiana, no Egito Antigo, na sabedoria judaica, na Escola Pitagórica e no Estoicismo. Com a forte presença do cristianismo, ela foi esquecida no mundo ocidental. Até que foi resgatada por outro filósofo alemão pessimista, Friedrich Nietzsche, o qual teve forte influência nos pensamentos de Schopenhauer.

No Eterno Retorno de Nietzsche, ele diz que os polos se alternam nas vivências em uma eterna repetição: criação e destruição, alegria e tristeza, saúde e doença, bem e mal: tudo vai e tudo retorna. Variações de sentidos já vividos, faces de uma mesma realidade – um complementa o outro. Nietzsche pensa o mundo como fogo eterno que se consome e se cria.

“Você viveria sua vida mais um vez e outra, e assim eternamente?”.

Na teoria, a repetição é como um peso, o destino de cada homem e de toda humanidade, do qual não existe escapatória. Tudo deve se repetir, num ciclo infinito e inquebrável. O fardo mais pesado.

É essa premissa que soa como um verdadeiro inferno em Dark, que Eva decide manter entre os dois mundos, porque para ela isso está relacionado à “vida”.

O Ouroboros é um dos símbolos que representa o conceito do Eterno Retorno, ele pode ser apresentado como uma serpente ou dragão que “devora a própria cauda” – significado do nome de origem grega.

O símbolo está muito presente em Dark: ele aparece ligado ao fio vermelho de Ariadne na caverna e também na pulseira que Tronte deu à Jana.

Percepção traiçoeira

No conceito do “gênio maligno” do filósofo francês René Descartes, escrito no século 17, ele dizia que não devemos confiar cegamente nas nossas percepções – poderíamos ter duas realidades alternativas baseadas em um único fato.

Muito antes de Descartes, o Mito da Caverna de Platão, presente em A República, sua obra mais complexa, já ligava a ilusão da percepção sugerindo que a construção da realidade era feita apenas através das sombras que vemos refletidas nas paredes de uma caverna.

Em Dark, a percepção da realidade é traiçoeira: existem duas realidades diferentes para um mesmo evento de cada dimensão.

Falha na Matrix

À medida que Jonas compreende seu lugar nas três dimensões, ele sempre repete “uma falha na matrix”, se referindo a ele e a Martha como déjà vus da terceira dimensão.

O conceito da Matrix foi mencionado pela primeira vez em uma palestra em 1977, intitulada “If You Find This World Bad, You Should See Some of the Others” (“Se você acha este mundo ruim, deve ver alguns dos outros”), de Phillip K. Dick, um dos escritores de ficção científica mais psicodélicos do gênero. Nela, o escritor compartilhou uma teoria de que o universo é uma simulação de computador altamente avançada.

Mais tarde, na trilogia de filmes Matrix, em que os humanos estão presos em uma realidade virtual, Neo vê um gato preto e diz ter tido um déjà vu. Trinity então explica que “O déjà vu é uma falha na Matrix. Acontece quando eles estão mudando alguma coisa”.

Embora Dark não trate de simulação de computador, mas de diferentes dimensões que brincam com a percepção dos personagens envolvidos, Jonas usa o termo para definir a si mesmo como uma “falha na Matrix”, relacionado a um “déjà vu”.

Não é à toa que o último capítulo encerra com Hannah, mãe de Jonas em outra dimensão, olhando, no mundo original, para uma jaqueta amarela e em seguida tomada pela sensação familiar de já ter vivido algo antes. No fim, ele era realmente um déjà vu: Hannah sugere dar ao seu filho o nome de Jonas.

“O que sabemos é uma gota; o que ignoramos um oceano”

A frase proferida muitas vezes pelo narrador de Dark, que descobrimos ser ninguém menos que o relojoeiro Tannhaus, é de autoria de Isaac Newton. O astrônomo, físico, matemático e filósofo natural é um dos personagens mais importantes da ciência, cujas descobertas transformaram nossa compreensão sobre o nosso mundo e sobre o universo.

Newton via o mundo como uma grande máquina cujo funcionamento pode ser entendido se conhecermos o funcionamento das pequenas peças que o compõe. Tannhaus, compondo pequenas peças de seus relógios, é tomado pelo fascínio das grandes peças que compõem o mundo.

Segundo Newton, na natureza as mesmas consequências tendem a ter as mesmas causas ou causas parecidas. Causas semelhantes têm consequências semelhantes e isso torna a natureza homogênea. Essa homogeneidade gera uma constância nas leis físicas e químicas e é essa constância que possibilita a harmonia do nosso universo.

Através de sua máquina no tempo, Tannhaus altera essa ordem ao criar dois outros mundos a partir do mundo de origem e, portanto, desequilibrando a harmonia do universo.

Só existiu uma história para contar em Dark porque ele sobrepôs sua vontade na intenção de saber. O personagem é uma fonte de conhecimento, mas usou ele movido por uma vontade de reverter a morte.

Tannhaus, que sempre olhou mais para as estrelas do que para o chão, como diz seu próprio filho, nas cenas finais da série, encara os olhos de sua neta como se ela contivesse em seu olhar o mesmo mistério que o universo.

Os outros dois mundos se desintegram enquanto a letra da música “What a Wonderful World”, de Louis Armstrong, compartilha em seus versos os detalhes da vida que constroem um mundo que nunca será tão maravilhoso como nenhum outro.

O Paraíso

A série destila filosofias densas e complexas para que o público entre em contato com todas elas de maneira fluida. Enquanto estão entretidas, as pessoas estão ao mesmo tempo absorvendo ideias riquíssimas que ressoaram ao longo do tempo na humanidade.

Com este jogo de conexões entre mundos diferentes, Dark nos propõe olhar para tudo a nossa volta de maneira menos ‘mundana’, letárgica ou desinteressante: ver a vida e os encontros dela como fenômenos dignos de serem observados com constante fascínio.

Afinal, o mundo original é o verdadeiro paraíso. E, nele, o que sabemos é uma gota; o que ignoramos um oceano.


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Jaqueline Paranzini
4 anos atrás

Que TEXTOO maravilhoso, parabéns, amei sua percepção.

Lázaro Barbosa
Lázaro Barbosa
4 anos atrás

Boa noite! Adorei o texto, mas discordo de um ponto na análise – sobre Eva ter na série o mesmo papel que Ariadne no mito do Minotauro. Diria mais: Eva seria o próprio Minotauro que não quer deixar Teseu (Adam) sair desse labirinto (a infinitude de vezes com que o ciclo se repete). Quem acaba desenrolando esse fio para que Adam (e Eva, por tabela) saia desse labirinto é Claudia, ao apontar que tudo começou em um terceiro mundo distinto dos deles – e com uma vantagem: ela faz isso sem ficar refém de ambos (como Ariadne ficou refém do amor não correspondido por Teseu), chegando mesmo a manipulá-los para salvar a própria filha, que só existe no mundo original.

Raquel Rapini
4 anos atrás

Oi Lázaro! Obrigada pela participação no texto. Gostei do seu ponto de vista. Mas continuo acreditando que o ponto da série seja a condução pelo fio, por parte da Martha. Desde o começo é ela quem aparece com referências ao mito de Ariadne e isso fica muito mais evidente na terceira temporada, quando descobrimos que é Eva quem conduz Jonas e Adam para manter o ciclo infinito – um dos plot twists da série.
No mito, Ariadne dá o fio para que Teseu retorne aos seus braços, não simplesmente para sair do labirinto. É basicamente isso que Eva manipula: Jonas volta para os braços de Martha em ambas as dimensões, infinitamente.
Cláudia cortou esse fio, mas como durante a cena em que Martha ensaia para a peça, ela diz que o fio pode ser cortado, mas um fio invisível seria mantido entre Ariadne e Teseu. Foi bem isso que a série sugeriu quando as portas das duas dimensões se fecharam para Martha e Jonas, ou seja, cortaram o fio.
No entanto, também acredito que toda perspectiva é válida para interpretar esta série fenomenal, já que a intenção dos criadores me parece ser esta: fazer com que os espectadores compartilhem suas opiniões e busquem o significado dos detalhes da narrativa, nos tirando da zona de conforto mental. Rs
Um abraço!

Tiago
Tiago
4 anos atrás

Gostei bastante das correlações filosóficas. Achei só que faltou alguma coisa de Freud. Embora ele não tenha influenciado a série diretamente como os autores que foram citados, a psicanálise tem muito a dizer sobre as questões da série. Compartilho algumas reflexões minhas sobre isso. Se puderem ler, acredito que pode ser mais uma perspectiva enriquecedora despertada por Dark.

http://osujeitodaideia.blogspot.com/2020/07/dark-e-psicanalise.html?m=1

Raquel Rapini
4 anos atrás

Oi Tiago!

Obrigada por trazer a perspectiva freudiana para o debate sobre Dark.

Diferentes pontos de vista enriquecem nossa interpretação sobre a série.

🙂

Rodrigo
2 anos atrás

Acabei de assistir a série pela terceira vez. É maravilhosamente intrigante.
Adorei seu texto, parabéns!

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