Quando Carl Sagan se deparou com a imagem do nosso planeta, capturada pela sonda Voyager, em 1990, concluiu que vivemos em um mero grão de areia azulado suspenso em um raio de sol.

A imagem, nomeada de Pálido Ponto Azul, provocou reflexões profundas no cientista sobre a história e futuro da humanidade, e o inspirou a escrever o célebre livro de mesmo nome.

No capítulo 2, “Assombrações da Luz”, sua esposa Ann Druyan sugere um experimento interessante baseado na foto.

“Olhem de novo para o pálido ponto azul do capitulo anterior. Observem bem. Olhem fixamente para o ponto por um longo tempo e tentem se convencer de que Deus criou todo o Universo para uma das aproximadamente 10 milhões de espécies de vida que habitam este grão de poeira. Agora dêem um passo adiante: imaginem que tudo foi feito apenas para uma única nuança dessa espécie, gênero ou subdivisão religiosa ou étnica. Se isso não lhes parecer improvável, tomem outro dos pontos. Imaginem que ele é habitado por uma forma diferente de vida inteligente. Que também nutre a noção de um Deus que criou todas as coisas para o seu bem. Até que ponto vocês levariam a sério essa pretensão?”

Sagan continua a reflexão:


““Está vendo aquela estrela?” “A vermelha brilhante”? – pergunta a filha em resposta. “Sim. Sabe, ela talvez já não esteja ali. Poder ter desaparecido a essa altura – explodido ou algo assim. A sua luz ainda está cruzando o espaço, só agora atingindo nossos olhos. Mas não a vemos como ela é. Nós a vemos como ela foi”

Muitas pessoas experimentam estimulante admiração quando se vêem, pela primeira vez, diante dessa verdade simples. Por quê? Por que ela seria tão irresistível? Em nosso pequeno mundo, a luz se move, para todos os fins práticos, instantaneamente. Se uma lâmpada está acessa, é claro que se encontra, brilhando onde a vemos. Estendemos a mão e a tocamos: está ali, sem dúvida alguma, e desagradavelmente quente. Se o filamento se rompe, a luz se apaga. Não a vemos no mesmo lugar, brilhando, iluminando o quarto, anos depois que se queimou e foi removida de seu suporte. A simples idéia parece sem sentido. Se estamos distantes, porém, um sol inteiro pode se apagar e continuaremos a vê-lo brilhar resplandecentemente; é bem possível que, por eras, fiquemos sem saber de sua morte – na verdade, durante o período do tempo que a luz, de velocidade assombrosa mas não infinita, leva para cruzar a imensidão intermediária.

As imensas distâncias até as estrelas e as galáxias significam que todos os corpos que vemos no espaço estão no passado – alguns deles tal como eram antes que a Terra viesse a existir. Os telescópios são máquinas do tempo. Há muitas eras, quando uma galáxia primitiva começou a derramar luz na escuridão circundante, nenhuma testemunha poderia ter adivinhado que bilhões de anos mais tarde alguns blocos remotos de rocha e metal, gelo e moléculas orgânicas se juntariam para formar um lugar chamado Terra; nem surgiria a vida, nem que seres pensantes evoluiriam e um dia captariam um ponto dessa luz galáctica, tentando decifrar o que a enviara em sua trajetória. E depois que a Terra morrer, daqui a uns 5 bilhões de anos, depois que ela for calcinada ou até tragada pelo Sol, surgirão outros mundos, estrelas e galáxias – e eles nada saberão de um lugar outrora chamado Terra.

Quase nunca parece preconceito. Ao contrário, parece apropriada a justa idéia de que, por ter nascido acidentalmente, o nosso grupo (seja ele qual for) deveria ter uma posição central no universo social. Entre os principais faraônicos e os pretendentes dos Plantagenet, os filhos de barões saqueadores e os burocratas do Comitê Central, as gangues de rua e os conquistadores de nações, os membros de maiorias convictas, seitas obscuras e minorias ultrajadas, essa atitude de favorecer os seus próprios interesses parece tão natural quanto respirar. Ele tira o seu sustento das mesmas fontes em que se alimentam o sexismo, o racismo, o nacionalismo e outros chauvinismos mortais que atormentam nossa espécie. É necessária força incomum de caráter para resistir às lisonjas dos que nos atribuem uma superioridade evidente, até concedida por Deus, sobre os nossos companheiros. Quando mais precária a nossa auto-estima, maior a nossa vulnerabilidade a esses apelos.

Como os cientistas são pessoas, não é surpreendente que pretensões parecidas tenham se insinuado na visão científica do mundo. Na verdade, muitos dos debates centrais na história da ciência parecem ser, ao menos em parte, disputas em que se procura decidir se os seres humanos são especiais. Quase sempre, o pressuposto aceito é de que a premissa é examinada com cuidado, descobre-se – em um número desalentadoramente grande de casos – que não somos.

Os nossos antepassados viviam ao ar livre. Sua familiaridade com o céu noturno era igual à que temos hoje com nossos programas favoritos de televisão. O Sol, a Lua, as estrelas e os planetas, todos nasciam no leste e se punham no oeste, cruzando o alto do céu nesse meio tempo. O movimento dos corpos celestes não era simplesmente uma diversão, provocando uma saudação ou resmungo reverente; era a única maneira de reconhecer as horas do dia e as estações. Para os caçadores e coletores, bem como para os povos agrícolas, conhecer o céu era uma questão de vida ou morte.

Providencial que o Sol, a Lua, os planetas e as estrelas fizessem parte de um relógio cósmico elegantemente configurado? Nada parecia acidental. Eles ali estavam, a nosso serviço. Quem mais fazia uso deles? Para que mais serviam?

E as luzes no céu se levantam e se põem ao nosso redor, não é evidente que estamos no centro do Universo? Os corpos celestes – tão claramente impregnados de poderes extraterrenos, especialmente o Sol, de que dependemos tanto, pois dele dependemos tanto, pois dele recebemos luz e calor – giram ao redor de nós como cortesãos adulando o rei. Mesmo que ainda não tivéssemos adivinhado, o exame mais elementar dos céus revela que somos especiais. O Universo parece projetado para seres humanos. É difícil considerar essas circunstancias sem experimentar confiança e orgulho. Todo o Universo feito para nós! Devemos ser realmente algo especial.

Essa demonstração satisfatória de nossa importância, escorada na observação cotidiana dos céus, transformou o conceito geocêntrico em uma verdade transcultural –ensinada nas escolas, incorporada à língua, parte integrante da grande literatura e das Escrituras Sagradas. Os dissidentes foram desencorajados, às vezes por meio de tortura e morte. Não é de admirar que, durante a maior parte da história humana, ninguém atenha questionado.

Era, sem dúvida, a visão de nossos antepassados caçadores e saqueadores. No segundo século, Ptolomeu, o grande astrônomo da Antigüidade, sabia que a Terra era uma esfera, sabia que seu tamanho era “um ponto” se comparado à distância das estrelas e ensinava que ela estava “bem no meio dos céus”. Aristóteles, Platão, santo Agostinho, santo Tomás de Aquino e quase todos os grandes filósofos e cientistas de todas as culturas acreditaram nessa ilusão durante 3 mil anos até o século XVII. Alguns se ocupavam em imaginar como o Sol, a Lua, as estrelas e os planetas poderiam estar engenhosamente presos a esferas cristalinas, de transparência perfeita – as grandesesferas, é claro, centradas na Terra -, o que explicaria os movimentos complexos dos corpos celestes. Tão meticulosamente relatados por gerações de astrônomos. E foram bem-sucedidos: com modificações posteriores, a hipótese geocêntrica explicava adequadamente os fatos do movimento planetário, assim como este era conhecido nos séculos II e XVI.

Daí foi apenas um passo para reivindicação ainda mais grandiosa – a de que a “perfeição” do mundo seria incompleta sem os seres humanos, como Platão afirmou em Timeu. “O homem é tudo”, escreveu o poeta e clérigo John Donne em 1625. “Ele não éuma parte do mundo, mas o próprio mundo; e logo abaixo da glória de Deus, a razão daexistência do mundo”.

A Terra, no entanto – não importa quantos reis, papas, filósofos, cientistas e poetas tenham insistido em afirmar o contrário – persistiu em girar em torno do Sol durante todos esses milênios. Pode-se imaginar um observador extraterrestre severo olhando a nossa espécie com desprezo durante todo o tempo, enquanto tagarelávamos animadamente: “O Universo criado pra nós! Somos o centro! Tudo nos rende homenagem! E concluído que nossas pretensões são divertidas, nossas aspirações patéticas e que este deve ser o planeta dos idiotas.”

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