Mrs. Fletcher é um livro envolvente e provocativo de Tom Perrotta que explora temas contemporâneos e necessários em torno dos relacionamentos, identidade, autoaceitação e adequação em tempos de transformações sociais.
A trama se concentra em Mrs. Fletcher, uma mulher de 40 e poucos anos que experimenta os prazeres e angústias da liberdade após seu filho entrar para a universidade. O drama de qualquer mãe americana se transforma quando ela descobre ser uma MILF, gênero da pornografia que designa mulheres de 30 a 50 anos.
Por meio dos vídeos pornôs na internet, Eve descobre como mulheres da sua idade são motivos de fetiche e são apreciadas e desejadas. Assim ela começa a explorar a própria sexualidade desafiando concepções pré-estabelecidas para mulheres como ela há tempo tempo.
O autor manipula questões em pauta na atualidade tais como feminismo, consentimento, relacionamento na era digital, identidade de gênero, autismo, bullying e saúde mental através de personagens que orbitam a protagonista. Com audácia, a narrativa vai desconstruindo tabus e preconceitos ao lançar as diferentes vivências para o campo da normalidade e naturalidade.
Margo, a professora transgênero que leciona uma matéria de identidade de gênero na faculdade comunitária que Eve ingressa, alça uma experiência pessoal e intimista dos caminhos que uma pessoa transgênero enfrenta para chegar ao que lhe é verdadeiro, enquanto ainda deve se manter firme diante do preconceito de pessoas à sua volta.
Os companheiros de sala de Eve, junto com sua colega de trabalho Amanda, integram o ciclo onde diferentes personalidades e realidades se conectam pela mesma busca de aceitação, adequação, afeto e pertencimento.
Nenhum deles se encaixa no modelo perfeito cobrado pela sociedade e pela mídia: uma mãe solteira de meia-idade, um negro ex-fuzileiro naval, uma transgênero, uma mulher fora dos padrões impostos pela cultura da beleza e um jovem com transtorno de estresse pós-traumático que não se adéqua à sua própria geração.
Neste círculo, eles constroem um espaço de troca de vivências, amadurecimento e liberdade de poderem ser exatamente como são, e também é onde testam seus próprios limites.
É nesse contraste que Brendan, filho de Eve, um jovem sarado, branco, hétero, privilegiado e fechado em sua bolha de alienação enfrenta grandes desafios na universidade ao descobrir que o modelo da masculinidade tóxica não se encaixa mais em meio a uma juventude interessada em romper padrões e ligada às transformações sociais.
Perrotta desenvolve uma narrativa satírica e que trata com naturalidade assuntos tão velados pelo conservadorismo cínico, construindo personagens consistentes e reais, com os quais é possível se identificar e simpatizar facilmente.
A história, em parte contada por um narrador que funciona ora como consciência do personagem, ora como um observador oculto, e com diálogos profundos e cômicos, transita entre a comédia e drama inerente da complexidade de cada pessoa.
Um livro com uma premissa moderna e desafiadora para aqueles que querem experimentar uma história bem contada com todos os elementos do mundo moderno, e principalmente para quem precisa se atualizar à ele, porque como já dizia Bob Dylan: “Times, they are a’changin’“.
Mrs. Fletcher da HBO
Logo que acabei o livro fui correndo maratonar a série da HBO baseada na história de Tom Perrotta, que traz Kathryn Hahn na pele de Mrs. Fletcher, esperando que tais temas fossem tratados com a mesma magnitude.
A minissérie fechada em 7 episódios de meia hora cada deixou de lado a profundidade do livro e focou na sexualidade dos personagens, optando por cenas explícitas e picantes que nem mesmo o livro se propõe a detalhar.
Pode ser pelo tempo curto disponível para desenvolver a narrativa, mas a história levada às telas acabou ficando superficial, já que toda a pluralidade em torno dos personagens, tão bem desenvolvida e em primeiro plano no livro, foram cortadas.
O autismo do irmão de Brendan, abordado de maneira sútil e breve na série, não foi tratada com a mesma seriedade do livro, por exemplo. Tampouco os efeitos do bullying no personagem Julian, ou as inseguranças e profundidade pessoal na história de Margo.
A atmosfera satírica e existencial de Perotta foi substituída por uma erótica e sensual, por vezes cômica, cheia de desejo reprimido cuja adaptação dá liberdade para explorar, modificando diálogos e ações dos personagens. Consequentemente, os deixando inconsistentes de personalidade, mas dominados puramente pelo ímpeto sexual.
O série encerra com uma mistura intensa de drama e sátira, modificando acontecimentos de um momento do livro que talvez muitos tenham torcido para terem acontecido de fato.
Mas deixa para trás um rastro de constrangimento, e não a ideia de que os personagens têm domínio de suas próprias experiências, protegidas do julgamento alheio, como no livro.
Minha sugestão é: leia Mrs. Fletcher, porque certamente será um dos livros mais deliciosos e atuais que você poderá ler. Assista a série depois, e me conta nos comentários o que achou. 🙂
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