The Boys é a série de super-heróis que a gente precisava. Sem clichês, narrativas óbvias e perseguições entre mocinhos e vilões, a produção da Amazon Prime vem com uma história para desmistificar a imagem de super-heróis.
Como seriam os super-heróis se eles existissem em nossa sociedade? O enredo traz uma visão satírica e subversiva dessa possibilidade. Lutas brutais, muito sangue, cenas gore e traços obscuros da natureza humana fazem parte desse universo que aproxima a ficção da realidade.
A história é adaptação de uma série de 75 volumes de quadrinhos nascidos da mente maligna, pervertida e genial de Garth Ennis. O mesmo criador de Preacher, que na mesma medida traz um humor negro e politicamente incorreto.
The Boys é ambientado em um mundo onde existem 200 mil heróis espalhados pelo planeta, mas apenas alguns deles, chamados de Os Sete, são mais famosos e gerenciados por uma corporação que trabalha meticulosamente na construção de suas imagens na mídia.
Com essa premissa, os atos heroicos já não são espontâneos, porque há sempre uma produção midiática na hora de combater o crime, quase como um reality show de heróis.
E o mais interessante é que, quando isso é jogado na tela, o herói não é mais aquela figura divina sem defeitos que faz o bem generalizado. Agora ele é cheio de traços obscuros tal qual um ser humano comum. A grande diferença é que os poderes fazem deles seres superiores.
É aí que entra a sequência de violência pesada de deixar a gente chocado, que a série abusa sem dó. Para ressaltar justamente esse abismo que existe entre um ser humano comum e um super. Ainda que em sua essência ele esteja vulnerável às falhas de personalidade humana.
Se o poder corrompe o homem, o pode absoluto que a fama e capacidade sobre-humana concedem à um super cria uma vida de hedonismo.
Aquela imagem patriarcal do homem superprotetor que conforta o menino interior de qualquer fã de quadrinho é despedaçada sem dó. Não tem mais jeito.
Cada personagem faz uma sátira clara à Liga da Justiça. Tanto é que os quadrinhos de Garth Ennis começaram a ser publicados com o selo da DC Comics, mas por pegarem tão pesado, eles migraram para a Dynamite, outro selo de quadrinho americano.
Além das cenas de ação, um dos pontos mais fortes da série é a construção dos personagens. São muito complexos, e fica difícil definir quem é herói ou vilão. Já que eles não são agressores completamente, tampouco vítimas.
Não fica fácil julgar se é uma desvirtuação de caráter mesmo ou só o conforto de poder fazer o que quiser que o mundo vai estar pronto para aplaudir.
Começando por Homelander, uma alusão descarada ao Superman, e de longe o mais escroto de todos. É um cara perturbado e com uma relação perturbadora com a dona de corporação. Ele não tem ética alguma quando enfrenta uma decisão moral a ser feita.
É um personagem construído para representar o defensor da justiça, o mais puro patriotismo americano e na mesma medida o que revela a decadência do american way e o white pride. O cara do olho azul, cabelo loiro, que vai salvar o planeta, mas na hora H quer mesmo que todo mundo se exploda, literalmente.
De fazer qualquer marmanjo ultranacionalista desligar a TV e xingar muito no Twitter.
Queen Maeve representa a Mulher Maravilha, uma personagem controversa, que até tenta lutar contra a sujeira que acontece nos bastidores da vida dos supers, mas está tão desacreditada que prefere aceitar e ser condescendente com tudo aquilo. Porque não merece ou não é capaz de mudar as coisas. Ela traz uma mensagem forte de conformismo perigoso para si mesma e o resto do mundo.
The Deep, uma sátira ao Aquaman, representa um etnocentrismo cínico. Capaz de apenas sentir empatia pela própria espécie, ele age com a maior naturalidade e frieza das maneiras mais vis imagináveis com “outras espécies”, no caso os seres humanos em geral.
O A-Train, um esportista The Flash, mostra o cara engolido pela fama. É babaca porque conseguiu ser importante e aprendeu que é assim que deve agir. E é ele quem comete logo no primeiro episódio um ato grotesco.
Aqui fica uma angústia pulsante sobre a impotência de um ser humano comum diante de um super. Por isso até que a série é tão magnetizante, já que a gente torce muito para que Hughie e seus companheiros, Frenchie, Mother’s Milk, Female e Billy Butcher consigam se vingar das injustiças que Os Sete acabam cometendo.
Enquanto isso, no contraponto, Starlight aparece como uma esperança, resistência e a vitalidade jovem de mudar as coisas. De transformar o mundo. Mesmo encontrando barreiras no meio do caminho e vendo como nada era como ela imaginou, a super não desiste. Teima. Peita a sujeira sem dó. Mas ronda ainda a dúvida: até que ponto o idealismo não é corrompido pelo poder e fama?
Sem contar o Black Noir que é tipo um Batman hipster, culto e erudito. Um personagem cômico. E Translucent que, ao invés de se infiltrar e combater o mal com seu poder de invisibilidade, é um pervertido que prefere ficar no banheiro feminino.
Ao mesmo tempo, com seu humor ácido, a série também ressalta uma grande indústria do cinema em torno de filmes de heróis. Os blockbusters produzidos aos montes para fazer bilheteria.
O oportunismo de se apropriar de causas do momento para vender filme é um dos pontos bem abordados. Filmes de super-heroínas que seguem a onda de empoderamento feminino pode vir mascarado com uma intenção mercadológica.
Não que eles não tenham um impacto positivo. Mas a super-heroína surge para representar a fortaleza feminina ou é só mais um fetiche para homem geek?
Críticas à parte, o que The Boys faz sem dó é isto: cuidado com os seus heróis. Eles te convencem que vão te salvar, mas pode ser só produto de uma boa equipe de relações públicas, estrutura de merchandising e estratégia de marketing… e eu não estou só falando de personagens de quadrinhos.